Em tempos “estranhos”, onde está a beleza?

…do que podemos apreciar em tempos desafiadores

Tempos de excesso de informações, preocupações e mudanças costumam direcionar nosso olhar para a ação prática. Isso é importante para lidar com emergências e resolver problemas, mas pode “cegar” nossa visão para detalhes, para o processo e para o que acontece enquanto estamos com foco exclusivamente resolutivo. Começando pelo nosso olhar sobre problemas e ocorrências que parecem entrar no mesmo balaio de “coisas a fazer”, compondo uma lista extenuante que, muitas vezes, nos autoimpomos ou nos é imposta a dar conta. Que questões podem surgir no meio das listas do tipo “vejo-logo-faço”? Há uma frase do Heidegger que diz que “questões surgem na discussão e confronto com as ‘coisas’”. Para ele, questões não são problemas, nem ocorrências, então não são coisas “a resolver”, mas a olhar. Essa é uma das questões que emergem nestes tempos “estranhos” em que vivemos: conseguimos ver o belo? Onde está a beleza?

O que é possível apreciar no que se repete e no que tem variado em nosso cotidiano? Para cuidar do nosso olhar para o que é belo, resgatamos  uma crônica do Rubem Alves que começa com a história de uma paciente que conta a seu terapeuta sobre uma mudança ao mesmo tempo trivial e espantosa em seu olhar:

Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões – é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola.
(Rubem Alves, “A complicada arte de ver”)

Essa qualidade de olhar sai do fazer automático e convoca os outros sentidos além da visão que buscamos promover no movimento da Revolução Artesanal. O “fazendo” artesanal que tanto valorizamos não acontece só através de nossas mãos, mas também no “olhando”, no “apreciando” o que nos contorna. Com esse olhar apreciativo, encontramos beleza e poesia nas sutilezas do cotidiano, como nas roupas no varal, balançadas pela brisa que atravessa a janela ou o quintal; no brilho das panelas lustradas sobre o fogão que despretensiosamente decoram a cozinha; no cheiro de limpeza e sensação de leveza depois da faxina; na dança que o aroma do café faz passando pelo filtro enquanto o líquido que convida à pausa vai decantando no bule e nas xícaras; no corte das pétalas brancas translúcidas de uma cebola… 

Foram esses olhares encantados com o cotidiano que recebemos e reunimos em uma publicação as Crônicas do Fazendo. Nossos leitores enviaram suas reflexões sobre o fazer e o que ele é capaz de revelar sobre quem somos e nossas histórias. Crônicas que narram um cotidiano bonito e íntimo do que captura o olhar de cada ser. 

Este é um olhar que inclui a materialidade do que é observado, com seus pesos, ruídos, cheiros, texturas e cores – um olhar que sai do espaço do digital e coloca nossos sentidos em contato com as coisas e, portanto, com nossas questões.

Depois de já termos ficado tanto tempo dentro de casa ou vivido tantas mudanças de rotina nestes tempos, com que olhos vamos sair disso tudo? Que poesia trivial seus olhos têm capturado nestes tempos?

Reparar nessas belezas pequenas está, usando as imagens que Rubem Alves traz na crônica “A complicada arte de ver”, “no lugar onde os olhos são guardados”. Deixar de “guardar os olhos na caixa de ferramentas”, treinados para o que é dito “útil”, e começar a guardá-los na “caixa de brinquedos”, reaprendendo um olhar que tem prazer em ver, que se permite brincar, se demorar e se espantar com o que vê. Em tempos que exigem tanta reinvenção e convidam a refazer futuros, ter olhos para ver o novo no dia a dia talvez seja a grande habilidade que estamos tendo a oportunidade de aprender.

Escrita artesanal por Carolina Messias, com Ciça Costa e Bruno Andreoni.

 

Referências bibliográficas

ALVES, Rubem. A complicada arte de ver. Folha de São Paulo, 26 out. 2004. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u947.shtml

HAN, Byung-Chul. A Salvação do belo. São Paulo: Vozes, 2019.

ARTESANAL - MANIFESTO

As mãos como ponte dos afetos de dentro para fora
dão forma ao pensamento, à singular expressão.

O artesanal mobiliza o que há de mais humano em nós:
imaginar, criar e fazer,
dar sentido às emoções, memórias, relações,
dar formas, cores, sabores, funções,
dar movimento e beleza.

Nosso ativismo artesanal acontece no “fazendo”:
no olhar sobre e para o mundo,
na escolha de como consumimos e ocupamos o mundo,
na valorização do pequeno, do local e do autoral,
no manejo do corpo com as ferramentas e os materiais,
no aprendizado com o erro, a repetição e o tempo do fazer,
no contato com a natureza e nossas raízes artesãs.

É no “fazendo” que nos colocamos
corajosamente em atrito com o nosso fazer;
é no “fazendo” que transformamos
as coisas, a nós mesmos e o mundo para,
aos poucos,
reacender a sabedoria que está dentro de nós,
de cada um de nós,
de nossa ancestralidade e
do que queremos criar com sentido neste mundo.

Por um mundo feito à mão, um mundo feito por nós!