Criatividade: de competência à potência

Discursos em torno das tendências sobre o futuro do trabalho e impactos da chamada Indústria 4.0 ou quarta revolução industrial em nosso cotidiano cada vez mais nos dão notícia da relação emaranhada da tecnologia com as habilidades humanas. Nunca estivemos tão conectados, operando em tempo real, com acesso a uma infinidade de dados e contato com “coisas inteligentes” (é geladeira smart, lavadora smart, carro smart… nos tragando para o ritmo frenético da automação). Dentro desse contexto em que coisas são smart, qual o papel do ser humano? Resposta fácil e nada simples: ser humano.

Para investigar e trazer soluções para essa questão complexa, desde o último século houve um crescimento exponencial do campo do desenvolvimento humano. Pesquisas, sistematizações, teorias, métodos, modelos… é vasto o território de abordagens que visam capacitar e aprimorar habilidades e competências humanas. Dentre elas, a criatividade é uma das mais valorizadas, figurando nas “atuais” e cobiçadas soft skills (competências suaves), que muitas vezes são tratadas quase como um pacote de conhecimentos, habilidades e atitudes do “ser humano smart”: comunicação, liderança, flexibilidade, trabalho em equipe, inteligência emocional… E, para cada uma delas, uma imensidão de métodos, técnicas e testes de aprimoramento para colocar o humano a serviço da demanda atual – como um aplicativo que precisa se atualizar para a versão 4.0. Nessa lógica, é exaustivo e bem difícil ser humano.

Não é que não seja importante aprender novas habilidades ou mesmo aprimorá-las. A questão é qual a intencionalidade que move essa busca e o modo como esse aprendizado se dá, muitas vezes de forma acelerada, cheio de regras e tem-quês, com foco mais no falar sobre a habilidade do que experimentar-se nela. Por exemplo, fala-se muito sobre criatividade, há uma avalanche de livros sobre esse tema, métodos para despertá-la, estudos sobre sua ligação com sinapses neurais, sobre neuroplasticidade, sobre seu impacto na gestão etc. mas ainda há poucos convites para experimentá-la na sua simplicidade:

Como você é criativo/a? Qual a expressão singular da sua criatividade? O que a sua criatividade move?

E essas não são perguntas teóricas ou mentais, elas demandam uma resposta a partir do fazer, por exemplo, ao fazer um tear livremente, é preciso articular seu gosto por uma ou outra cor de linha; ao escrever um texto, é necessário acessar sua biblioteca interna de referências e afetos e escolher palavras que expressem ideias; ao pintar um quadro, é preciso cuidar do peso da mão no pincel sobre a tela, a quantidade e a cor da tinta, a direção do traçado; ao preparar um pão caseiro, a receita indica uma ordem importante para a alquimia acontecer, mas ela só acontece no manusear, na força e no jeito de esticá-la (os dedos sentem a textura e sabem se a massa pede mais farinha, mais água), aprende-se a deixar o tempo fazer seu trabalho de fermentação, aprende-se sobre o tempo do não fazer… A criatividade singular está no que se escolhe fazer, na forma de fazer, no que acontece no “fazendo” e na relação com o que resulta desse movimento (o feito).

A criatividade é a alquimia entre criar e articular conhecimentos, habilidades e afetos. Quando se tenta padronizar formas criativas comuns, sistematizar métodos que simplificam e agilizam o processo criativo, impor fórmulas para acessar a criatividade, o resultado é controlado e até mensurável, pois contém o caos, mas limita o potencial dessa alquimia que acontece na singularidade (e na união de várias singularidades, quando em grupo). A criatividade não é só uma competência (“suave”) a ser desenvolvida, ela é potência a ser explorada e expandida.

A perspectiva artesanal vem na contracorrente dos teoricismos, questionando os pressupostos das sistematizações e excesso de demandas para “melhorar” o ser humano. O fazer artesanal é humanizador, pois tece o criar e o ser criativo. No artesanal, convoca-se o ser que o humano é. Quão profundo e quantas possibilidades podemos alcançar apenas investigando o que já é humano em nós? 

Escrita artesanal por Carolina Messias com Ciça Costa e Bruno Andreoni

ARTESANAL - MANIFESTO

As mãos como ponte dos afetos de dentro para fora
dão forma ao pensamento, à singular expressão.

O artesanal mobiliza o que há de mais humano em nós:
imaginar, criar e fazer,
dar sentido às emoções, memórias, relações,
dar formas, cores, sabores, funções,
dar movimento e beleza.

Nosso ativismo artesanal acontece no “fazendo”:
no olhar sobre e para o mundo,
na escolha de como consumimos e ocupamos o mundo,
na valorização do pequeno, do local e do autoral,
no manejo do corpo com as ferramentas e os materiais,
no aprendizado com o erro, a repetição e o tempo do fazer,
no contato com a natureza e nossas raízes artesãs.

É no “fazendo” que nos colocamos
corajosamente em atrito com o nosso fazer;
é no “fazendo” que transformamos
as coisas, a nós mesmos e o mundo para,
aos poucos,
reacender a sabedoria que está dentro de nós,
de cada um de nós,
de nossa ancestralidade e
do que queremos criar com sentido neste mundo.

Por um mundo feito à mão, um mundo feito por nós!