Que Relação noss fazer Constrói

E quando nos perguntamos isso, logo somos levados à conexão. Muito antes das redes, internet e nuvens de dados, o ser humano se conectava consigo e com o outro em torno de algo comum apenas à nossa espécie: dar sentido, atribuir significado. 

Uma placa de madeira, esculpida, se torna roda em torno de 3.500 a.C.; uma pedra se torna faca para caça, há 1,5 milhão de anos; um pedaço de ferro, talhado, se torna talher, uma ferramenta intermediária entre as mãos e o alimento e que começa a ser usada só a partir do séc. XI.

Transformamos objetos e atribuímos utilidades a eles; utilidades essas ligadas tanto à sobrevivência quanto a valores caros a nós – beleza, segurança, praticidade, pertencimento, troca… 

Conexão com desejos – consigo

Ilustração de artista desconhecido - extraído de pinterest.com

Dessa vez, quero falar de algo que é capaz de unir subjetividades numa mesma e única humanidade, sem deixar de ressaltar o que há de único em cada um – a poesia e a literatura. E quero unir essa linguagem a um fazer que tem em si diferentes camadas, e que tem sido o tema dos outros textos já escritos até aqui – o bordado na fotografia.

Tenho uma admiração profunda por um filósofo francês do século XX, chamado Louis Lavelle e é a ele que vou recorrer algumas vezes para organizar meu pensamento nesse texto. Em um dos seus livros, chamado “A Consciência de Si”, há um capítulo dedicado à importância do ato de escrever, como um exercício de encontro com a própria consciência. Para ele, “a escrita sempre pressupõe uma longa conversa consigo mesmo que aspira a se tornar uma conversa com todos os homens. (p. 53)

Ilustração de Catrín Welz-Stein
Mesa pronta para a experiência de bordado e poesia - Cecilia Meireles - realizada em junho de 2019.

Na literatura e na poesia, o que é capaz de nos emocionar, nos encantar ou assombrar, é muitas vezes exatamente a possibilidade que encontramos de nos comunicar com um mundo muito maior que nós, mas que vivencia sentimentos tão próximos, que diminuem as distâncias simbólicas e nos agrega a uma única humanidade.

Se você acompanhou os outros textos escritos até aqui, já viu a comparação possível entre o sentido da palavra “texto” e “têxtil” e a relação com a memória, quando se borda a fotografia.

Trazer a poesia e a literatura como uma referência para se escolher a fotografia e o bordado a ser feito, é como inserir uma camada a mais de significados na própria memória e subjetividade. É colocar a sua memória para se encontrar com outras tantas memórias possíveis, outras histórias de vida e outras biografias. É, enfim, uma costura simbólica de mundos, em que você deixa de estar só, mas permanece sendo único.

Os melhores livros não nos dão a conhecer nada que seja exterior a nós: lembram-nos diversos encontros nos quais a verdade trazida por eles já se revelara a nós espontaneamente. Dela havíamos tidos uma visão rápida e evanescente, que agora se transforma em iluminação. Ela deixa de ser incerta e nebulosa: a pureza de seu contorno se desenha. Nossa confiança na exatidão de nosso olhar aumenta: até então não ousávamos permitir que ele se demorasse no ligeiro sulco que a verdade havia traçado na superfície de nossa consciência. Agora que essa verdade parece ser-nos proposta por outrem, ousamos tomar posse dela: tornamo-nos capazes de contemplá-la, de testá-la e de estabelecer-nos nela.

LAVELLE, p. 54

Bordado da Valéria, na experiência de bordado e poesia sobre Cecilia Meireles e seu “Cântico XXIV”.
A partir do mesmo poema de Cecilia, esse foi o trabalho realizado pelo Luiz, na mesma oficina em que esteve a Valéria.

Ao longo desse tempo em que realizo os encontros de bordado e fotografia, já tive três experiências de trazer a poesia como um tema para a roda de bordar. Numa delas, trouxe Cecilia Meireles e seu “Cântico XXIV”; na outra, trouxe Antonio Cícero, e seu poema “Guardar”, que trata da memória especialmente; e trouxe há pouco tempo, antes de entrarmos em período de isolamento social, João Cabral de Melo Neto e sua “Pequena Ode Mineral”. Minhas escolhas de autores e poemas passaram sempre por tentar refletir a partir do fazer manual do bordado simbólico sobre a imagem, algumas questões que envolvessem essa humanidade que temos em nós, para além das histórias pessoais de cada um.

Em todos os encontros, me surpreendi com a maneira como a poesia pode fazer ir além do previsto qualquer relação simbólica a ser construída. Sempre me surpreende a maneira como a partir de um interlocutor comum para todos nós – que é o próprio poeta – encontramos em nós valores únicos e universais, conversamos com nossas circunstâncias momentâneas, mas nos colocamos a pensar para além dela. Como diz Lavelle, “quem comunica sua intimidade não fala mais de si, mas de um universo espiritual que traz em si e que é o mesmo para todos.”

Nesse sentido as fotografias de cada encontro de bordado também não foram trazidas pelos participantes, mas escolhidas por mim. Uma escolha, em princípio arriscada por sua arbitrariedade, mas ao mesmo tempo, organizadora de alguma maneira dos limites impostos pelo tempo da oficina e os caminhos para a interpretação simbólica. Afinal, é preciso um mínimo de condução e de geração de tranquilidade para um grupo que não se conhece e está se encontrando pela primeira vez. Fotos de artistas que, na minha opinião, poderiam de alguma maneira suscitar mais uma camada de leitura, uma nova (re)interpretação de um texto, agora não verbal. Novas surpresas ao ver que uma mesma foto pode gerar diferentes visões sobre o mesmo poema.

Poder ter um tempo para se ouvirem, nas diferentes subjetividades e construções simbólicas em cada foto bordada. Esse é um momento e um sentido fundamental dessas experiências de bordado e poesia. A partir, muitas vezes, da mesma foto escolhida por mais um participante, há histórias e interpretações únicas, e é aí que mora a delicadeza na partilha desses saberes.

São camadas de sentido, significado e simbolização. O exercício de bordar uma imagem a partir de um poema lido e compartilhado entre todos, é um encontro de si consigo mesmo e com sua consciência e memória, mas é mais que isso, se é que poderia ficar ainda mais bonito: é um encontro com uma humanidade inteira, que comunga de sentimentos, valores, angústias e possibilidades. E é o encontro direto com uma escolha de alguém que decidiu comunicar com palavras, ao que agora escolhemos responder com símbolos, imagens e principalmente, a linha e a agulha, numa fiação de sentidos, tempos e espaços nas urdiduras e tramas do fazer manual.

Bordar uma fotografia a partir dos versos e estrofes de um poema é como fazer um encontro com o humano que mora em nós e também com a humanidade que existe no mundo. Não só ressignificar nossa própria história e memória, mas incluí-la numa pertença espiritual maior, a partir de um gesto simples, mas definitivo – o fazer manual e o costurar(-se) nas próprias histórias.

Uma cena registrada na experiência de bordado e poesia sobre a memória, a partir do poema “Guardar”, de Antonio Cícero.

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Bia Padial

Quem sou eu, Bia Padial?
Posso dizer que sou muito mais professora que bordadeira, mas descobri no bordado na fotografia uma outra forma de expressão e construção simbólica, para além da minha paixão pela fotografia em si, que nutro desde criança, quando já buscava recortes e ângulos para dizer o que queria.
Desde 2017, me aventuro a costurar com linha e agulha minhas próprias fotografias ou outras imagens que me encantam e que considero possível uma camada a mais de significado, menos como expressão estética e artística e muito mais como autocuidado, já que tem sido uma das melhores maneiras de exercitar a presença, a meditação e alcançar a tranquilidade e compreensão sobre mim mesma, desde então.
A partir de 2018, resolvi que queria partilhar essas experiências com outras pessoas, e a partir do grupo SP Feita a Mão (@spfeitaamao), criei as oficinas, que prefiro chamar de “experiências”, um lugar onde os diálogos são mediados por linha e agulha.

Bibliográfia

LAVELLE, Louis – . SP. Ed. É Realizações, 2014.
___________ – O Erro de Narciso. SP, Ed. É Realizações, 2012.

ARTESANAL - MANIFESTO

As mãos como ponte dos afetos de dentro para fora
dão forma ao pensamento, à singular expressão.

O artesanal mobiliza o que há de mais humano em nós:
imaginar, criar e fazer,
dar sentido às emoções, memórias, relações,
dar formas, cores, sabores, funções,
dar movimento e beleza.

Nosso ativismo artesanal acontece no “fazendo”:
no olhar sobre e para o mundo,
na escolha de como consumimos e ocupamos o mundo,
na valorização do pequeno, do local e do autoral,
no manejo do corpo com as ferramentas e os materiais,
no aprendizado com o erro, a repetição e o tempo do fazer,
no contato com a natureza e nossas raízes artesãs.

É no “fazendo” que nos colocamos
corajosamente em atrito com o nosso fazer;
é no “fazendo” que transformamos
as coisas, a nós mesmos e o mundo para,
aos poucos,
reacender a sabedoria que está dentro de nós,
de cada um de nós,
de nossa ancestralidade e
do que queremos criar com sentido neste mundo.

Por um mundo feito à mão, um mundo feito por nós!