O Bordado e a Fotografia

Os três textos que se seguem aqui são camadas de um aprendizado que vivencio na prática desde 2018, quando comecei a organizar experiências de bordado em fotografia junto com o grupo SP Feita a Mão, e que compartilho agora. Por ser mais educadora que bordadeira, sempre busquei nesses encontros outras formas de viver processos educativos, que em grupos grandes e nos limites impostos pela escola, me pareciam difíceis.

O primeiro texto se concentra na riqueza que um encontro voltado ao fazer manual pode gerar, do ponto de vista educativo. O quanto a escuta ativa de histórias, memórias e o quanto o exercício de alinhavar (literalmente) esses
processos junto com as pessoas, pode ser rico para o aprendizado de uma linguagem simbólica e um crescimento comum.

O segundo texto, numa continuidade com o primeiro, trata da memória ressignificada, que enche a vida de novos sentidos, reorganiza nossa própria narrativa, e nos coloca de frente para a urdidura (tempo) e trama (espaço) da nossa existência, quando decidimos bordar uma fotografia. Acredito que essa linguagem nessa materialidade, nos permite rever e produzir uma curadoria de nós mesmos nessa longa linha do tempo, que é nossa vida.

Por último, quis contar um pouco sobre minha decisão de unir fotografia, bordado e literatura, em oficinas temáticas. Essa foi mais uma camada de sentidos que o bordado abriu para mim nesse processo de descobertas, e quis partilhar aqui. Afinal, como diz o filósofo francês Louis Lavelle: “quem comunica sua intimidade não fala mais de si, mas de um universo espiritual que traz em si e que é o mesmo para todos”, e a literatura é, certamente, uma forma de abrir as portas para essas intimidades compartilhadas e costuradas com linha e agulha. Sugiro, como convite, que você não só leia os artigos, mas principalmente, que pegue a agulha, a linha e experimente viver na prática esse fazer manual. Vou adorar saber como foi!

A memória e um costurar(-se) – uma junção de sentidos e criação.

Fotografia e intervenção de AnnaTereza Barbosa

Jorge Luis Borges tem um conto, de 1942, que descobri nesse ano, há pouco tempo. Trata-se de “Funes, o Memorioso” e foi escrito durante uma crise de insônia do autor. Esse personagem, depois de um acidente fica com uma sequela que, em princípio o faz muito feliz, mas que depois vai aos poucos colocando-o em situação cada vez mais angustiante, a ponto de considerar a própria cabeça “um depósito de lixo”. Acontece que Funes passa a se lembrar de absolutamente tudo. Nada mais passa despercebido à sua memória, e se antes isso o alegrava por ser uma característica única, que o tornava diferente de todas as outras pessoas, logo passou a ser um suplício, por não poder ter direito à seleção dos próprios pensamentos, por não conseguir domar a construção da sua narrativa de vida.

Ilustração de artista desconhecido - extraído de pinterest.com

Comecei esse texto com a lembrança desse personagem, porque ele me leva à importância da narrativa e da curadoria da nossa própria história e da nossa memória. Não lembramos de tudo o que nos acontece, de jeito nenhum. Mas quando vamos falar de nós mesmos ou do que está ao nosso redor, sempre contamos uma história com detalhes que realmente fizeram se ressaltar à nossa memória. E essa é a nossa vida, essa é a nossa história.

Foto bordada pela Clarice, numa das experiências de bordado, uma memória de infância.

A fotografia tem essa importância de nos ajudar a narrar nossa história, nossos amores, nossos momentos. São sempre lapsos ou “instantes decisivos” – para usar o termo do fotógrafo francês Cartier-Bresson – que nos ajudam a compor uma linha, um fio da nossa própria narrativa. Bordar uma fotografia, por sua vez, é trazer à tona esse momento colocado na imagem e ir além de apenas lembrá-lo como um acontecimento importante. Quando se propõe a bordar uma foto, faz-se uma busca dos símbolos que aquele momento pôde suscitar e talvez influenciar em toda a narrativa que vem compondo essa vida.

É mais que a oportunidade de reviver um momento; é na verdade, a oportunidade de ressignificar o vivido simbolicamente, com um fio e uma agulha. É um costurar-se de novo, em trama simbólica, na busca da urdidura e da trama que compõe, a partir daquele momento tão especial, o tecido da vida como um todo.

Foto bordada pela Gabriela, de uma memória de viagem à Itália com sua família.

Pode parecer estranho assim, só de ouvir dizer, por isso convido a você, leitor ou leitora, a escolher uma imagem que seja significativa de um momento da sua vida, que lhe conte sobre quem você foi um dia ou ainda continua a ser. Olhe para essa fotografia demoradamente, busque onde incide a luz nela, encontre os objetos que a compõem, faça-se a pergunta sobre quais desses objetos são meros acessórios na foto, e quais ali presentes já se configuram como símbolos e pontes para outras memórias… depois de todo esse exercício, escolha a intervenção que deseja fazer na imagem: gostaria de ressaltar a paisagem? Ou então um dos objetos presentes? Gostaria, por outro lado, de trazer à pessoa da foto uma nova marca, que dialogue com o tempo vivido? Enfim… converse com seus pensamentos selecionados. Ao contrário de Funes, você tem um único momento à sua mão, e é esse momento que abre portas para outras histórias da sua vida, que nesse momento, você sabe que não gostaria que se perdessem da sua memória jamais.

Clarice no meio do seu projeto de bordado, durante a experiência.

Com coragem, pegue uma agulha e fure de acordo com o desenho que quer ver pronto na foto depois. Não se preocupe com a perfeição dos pontos e com a técnica do bordado. Diferente do tecido, a foto quer que você dialogue com ela, que você traga seus pensamentos e os costure com agulha e linha. Bordar a foto é uma experiência de ressignificação. Esse ir e vir da linha e agulha, ora na frente e ora no verso da imagem, é um acordar de sentimentos, histórias guardadas, sorrisos que você volta a sentir vontade de dar, um choro que escapa… Bordar a foto é um encontro consigo mesmo num exercício de curadoria da própria memória. Um exercício de sentidos posto à prova pelo fazer manual. Cecilia Almeida Salles, em seus estudos sobre o processo criativo, traz a importância da memória e da ressignificação que sentidos que a criação provoca:

Não há percepção que não seja impregnada de lembranças, e as sensações têm papel amplificador, permitindo que certas percepções fiquem na memória. A estreita relação nos leva a examinar seus modos de ação nos processos criativos, sem separá-las, mantendo exatamente o que as conecta: interagem por meio de emoções ou de sensações, como vimos. A percepção do mundo exterior se dá por intermédio de nossos receptáculos sensoriais e sensitivos, que geram sensações intensas, mas fugidias. Para que um aspecto desta percepção fique na memória é necessário que o estímulo tenha uma certa intensidade.

(…) Recorremos a auxílios exteriores a nós mesmos para reencontrar nossas lembranças ou simplesmente para datá-las ou para localizá-las no tempo, pois podemos sentir sem memória, mas não podemos re-sentir sem ela.

Essa foto foi bordada pela Carolina na experiência de bordado, e tem uma história muito linda. É o momento da formatura dela em Medicina, e esse cabeço é no seu pai. Foi um momento muito marcante pra ela, pelas dificuldades vividas ao longo para manter o curso. Seu pai foi seu grande apoiador, e ela quis ressaltar esse abraço de gratidão, tomando de flores como símbolo a envolver seu pai.

O bordado passa a ser, então, mais que um exercício estético, e muito mais um exercício de autocuidado, de busca e encontro de si mesmo e de uma história vivida. É uma forma de escrita, que passa pelos símbolos desenhados na imagem e chega na costura de si. Sobre isso, é importante dizer que as palavras “Texto” e “têxtil” não têm só sonoridades próximas. Para muitas culturas, a arte da tecelagem tem sua origem no mundo divino, e o cruzamento do conjunto da urdidura e trama, tem em si o simbolismo da existência na relação entre tempo e espaço.

Quis trazer aqui mais um bordado da Carolina, que dessa vez bordou a bênção de sua mãe no momento do seu casamento. Essa foto foi bordada meses depois da experiência, numa sequência aos processos criativos e ressignificação da memória que ela continuou a vivenciar.

Ou seja, bordar uma foto implica na escolha do momento vivido e destacado na imagem, portanto, uma viagem às memórias materializadas até que apareça a imagem certa; implica também na criação de novos símbolos para reviver essa história e projetar nela novas interpretações; e finalmente… implica no ato de costurar a memória à história de uma vida inteira, deixando que esse exercício possa ensinar também um pouco sobre quais caminhos essa vida ganhou extensão e profundidade, numa dinâmica de tempo e espaço.

Bordar a foto é trazer a narrativa que se quer guardar e elaborar sobre ela os sentidos de uma vida percorrida. Bem diferente dos acúmulos sem sentido de Funes, não? Que tal experimentar?

Compartilhe com seus amigos!

Bia Padial

Quem sou eu, Bia Padial?
Posso dizer que sou muito mais professora que bordadeira, mas descobri no bordado na fotografia uma outra forma de expressão e construção simbólica, para além da minha paixão pela fotografia em si, que nutro desde criança, quando já buscava recortes e ângulos para dizer o que queria.
Desde 2017, me aventuro a costurar com linha e agulha minhas próprias fotografias ou outras imagens que me encantam e que considero possível uma camada a mais de significado, menos como expressão estética e artística e muito mais como autocuidado, já que tem sido uma das melhores maneiras de exercitar a presença, a meditação e alcançar a tranquilidade e compreensão sobre mim mesma, desde então.
A partir de 2018, resolvi que queria partilhar essas experiências com outras pessoas, e a partir do grupo SP Feita a Mão (@spfeitaamao), criei as oficinas, que prefiro chamar de “experiências”, um lugar onde os diálogos são mediados por linha e agulha.

Bibliográfia

BORGES, Jorge Luis – Funes, o Memorioso. In Ficções. SP, Cia das Letras – 2007.
SALLES, Cecilia Almeida – Redes de Criação – a construção da obra de arte (versão digital em E-book Kindle).
RONNBERG, Ami (chefe de redação) – O Livro dos Símbolos – Reflexões sobre imagens arquetípicas. Ed. Taschen, 2012.

Blog e Podcast “Psicopatologia e Literatura”

Blog
Podcast

ARTESANAL - MANIFESTO

As mãos como ponte dos afetos de dentro para fora
dão forma ao pensamento, à singular expressão.

O artesanal mobiliza o que há de mais humano em nós:
imaginar, criar e fazer,
dar sentido às emoções, memórias, relações,
dar formas, cores, sabores, funções,
dar movimento e beleza.

Nosso ativismo artesanal acontece no “fazendo”:
no olhar sobre e para o mundo,
na escolha de como consumimos e ocupamos o mundo,
na valorização do pequeno, do local e do autoral,
no manejo do corpo com as ferramentas e os materiais,
no aprendizado com o erro, a repetição e o tempo do fazer,
no contato com a natureza e nossas raízes artesãs.

É no “fazendo” que nos colocamos
corajosamente em atrito com o nosso fazer;
é no “fazendo” que transformamos
as coisas, a nós mesmos e o mundo para,
aos poucos,
reacender a sabedoria que está dentro de nós,
de cada um de nós,
de nossa ancestralidade e
do que queremos criar com sentido neste mundo.

Por um mundo feito à mão, um mundo feito por nós!