O Bordado e a Fotografia
Os três textos que se seguem aqui são camadas de um aprendizado que vivencio na prática desde 2018, quando comecei a organizar experiências de bordado em fotografia junto com o grupo SP Feita a Mão, e que compartilho agora. Por ser mais educadora que bordadeira, sempre busquei nesses encontros outras formas de viver processos educativos, que em grupos grandes e nos limites impostos pela escola, me pareciam difíceis.
O primeiro texto se concentra na riqueza que um encontro voltado ao fazer manual pode gerar, do ponto de vista educativo. O quanto a escuta ativa de histórias, memórias e o quanto o exercício de alinhavar (literalmente) esses
processos junto com as pessoas, pode ser rico para o aprendizado de uma linguagem simbólica e um crescimento comum.
O segundo texto, numa continuidade com o primeiro, trata da memória ressignificada, que enche a vida de novos sentidos, reorganiza nossa própria narrativa, e nos coloca de frente para a urdidura (tempo) e trama (espaço) da nossa existência, quando decidimos bordar uma fotografia. Acredito que essa linguagem nessa materialidade, nos permite rever e produzir uma curadoria de nós mesmos nessa longa linha do tempo, que é nossa vida.
Por último, quis contar um pouco sobre minha decisão de unir fotografia, bordado e literatura, em oficinas temáticas. Essa foi mais uma camada de sentidos que o bordado abriu para mim nesse processo de descobertas, e quis partilhar aqui. Afinal, como diz o filósofo francês Louis Lavelle: “quem comunica sua intimidade não fala mais de si, mas de um universo espiritual que traz em si e que é o mesmo para todos”, e a literatura é, certamente, uma forma de abrir as portas para essas intimidades compartilhadas e costuradas com linha e agulha. Sugiro, como convite, que você não só leia os artigos, mas principalmente, que pegue a agulha, a linha e experimente viver na prática esse fazer manual. Vou adorar saber como foi!
A literatura e a poesia como um fio para o bordado – reconstruindo imagens de si e do mundo.
Dessa vez, quero falar de algo que é capaz de unir subjetividades numa mesma e única humanidade, sem deixar de ressaltar o que há de único em cada um – a poesia e a literatura. E quero unir essa linguagem a um fazer que tem em si diferentes camadas, e que tem sido o tema dos outros textos já escritos até aqui – o bordado na fotografia.
Tenho uma admiração profunda por um filósofo francês do século XX, chamado Louis Lavelle e é a ele que vou recorrer algumas vezes para organizar meu pensamento nesse texto. Em um dos seus livros, chamado “A Consciência de Si”, há um capítulo dedicado à importância do ato de escrever, como um exercício de encontro com a própria consciência. Para ele, “a escrita sempre pressupõe uma longa conversa consigo mesmo que aspira a se tornar uma conversa com todos os homens. (p. 53)
Na literatura e na poesia, o que é capaz de nos emocionar, nos encantar ou assombrar, é muitas vezes exatamente a possibilidade que encontramos de nos comunicar com um mundo muito maior que nós, mas que vivencia sentimentos tão próximos, que diminuem as distâncias simbólicas e nos agrega a uma única humanidade.
Se você acompanhou os outros textos escritos até aqui, já viu a comparação possível entre o sentido da palavra “texto” e “têxtil” e a relação com a memória, quando se borda a fotografia.
Trazer a poesia e a literatura como uma referência para se escolher a fotografia e o bordado a ser feito, é como inserir uma camada a mais de significados na própria memória e subjetividade. É colocar a sua memória para se encontrar com outras tantas memórias possíveis, outras histórias de vida e outras biografias. É, enfim, uma costura simbólica de mundos, em que você deixa de estar só, mas permanece sendo único.
Os melhores livros não nos dão a conhecer nada que seja exterior a nós: lembram-nos diversos encontros nos quais a verdade trazida por eles já se revelara a nós espontaneamente. Dela havíamos tidos uma visão rápida e evanescente, que agora se transforma em iluminação. Ela deixa de ser incerta e nebulosa: a pureza de seu contorno se desenha. Nossa confiança na exatidão de nosso olhar aumenta: até então não ousávamos permitir que ele se demorasse no ligeiro sulco que a verdade havia traçado na superfície de nossa consciência. Agora que essa verdade parece ser-nos proposta por outrem, ousamos tomar posse dela: tornamo-nos capazes de contemplá-la, de testá-la e de estabelecer-nos nela.
LAVELLE, p. 54
Ao longo desse tempo em que realizo os encontros de bordado e fotografia, já tive três experiências de trazer a poesia como um tema para a roda de bordar. Numa delas, trouxe Cecilia Meireles e seu “Cântico XXIV”; na outra, trouxe Antonio Cícero, e seu poema “Guardar”, que trata da memória especialmente; e trouxe há pouco tempo, antes de entrarmos em período de isolamento social, João Cabral de Melo Neto e sua “Pequena Ode Mineral”. Minhas escolhas de autores e poemas passaram sempre por tentar refletir a partir do fazer manual do bordado simbólico sobre a imagem, algumas questões que envolvessem essa humanidade que temos em nós, para além das histórias pessoais de cada um.
Em todos os encontros, me surpreendi com a maneira como a poesia pode fazer ir além do previsto qualquer relação simbólica a ser construída. Sempre me surpreende a maneira como a partir de um interlocutor comum para todos nós – que é o próprio poeta – encontramos em nós valores únicos e universais, conversamos com nossas circunstâncias momentâneas, mas nos colocamos a pensar para além dela. Como diz Lavelle, “quem comunica sua intimidade não fala mais de si, mas de um universo espiritual que traz em si e que é o mesmo para todos.”
Nesse sentido as fotografias de cada encontro de bordado também não foram trazidas pelos participantes, mas escolhidas por mim. Uma escolha, em princípio arriscada por sua arbitrariedade, mas ao mesmo tempo, organizadora de alguma maneira dos limites impostos pelo tempo da oficina e os caminhos para a interpretação simbólica. Afinal, é preciso um mínimo de condução e de geração de tranquilidade para um grupo que não se conhece e está se encontrando pela primeira vez. Fotos de artistas que, na minha opinião, poderiam de alguma maneira suscitar mais uma camada de leitura, uma nova (re)interpretação de um texto, agora não verbal. Novas surpresas ao ver que uma mesma foto pode gerar diferentes visões sobre o mesmo poema.
Poder ter um tempo para se ouvirem, nas diferentes subjetividades e construções simbólicas em cada foto bordada. Esse é um momento e um sentido fundamental dessas experiências de bordado e poesia. A partir, muitas vezes, da mesma foto escolhida por mais um participante, há histórias e interpretações únicas, e é aí que mora a delicadeza na partilha desses saberes.
São camadas de sentido, significado e simbolização. O exercício de bordar uma imagem a partir de um poema lido e compartilhado entre todos, é um encontro de si consigo mesmo e com sua consciência e memória, mas é mais que isso, se é que poderia ficar ainda mais bonito: é um encontro com uma humanidade inteira, que comunga de sentimentos, valores, angústias e possibilidades. E é o encontro direto com uma escolha de alguém que decidiu comunicar com palavras, ao que agora escolhemos responder com símbolos, imagens e principalmente, a linha e a agulha, numa fiação de sentidos, tempos e espaços nas urdiduras e tramas do fazer manual.
Bordar uma fotografia a partir dos versos e estrofes de um poema é como fazer um encontro com o humano que mora em nós e também com a humanidade que existe no mundo. Não só ressignificar nossa própria história e memória, mas incluí-la numa pertença espiritual maior, a partir de um gesto simples, mas definitivo – o fazer manual e o costurar(-se) nas próprias histórias.