Que relações nosso fazer constrói?

E quando nos perguntamos isso, logo somos levados à conexão. Muito antes das redes, internet e nuvens de dados, o ser humano se conectava consigo e com o outro em torno de algo comum apenas à nossa espécie: dar sentido, atribuir significado. Uma placa de madeira, esculpida, se torna roda em torno de 3.500 a.C.; uma pedra se torna faca para caça, há 1,5 milhão de anos; um pedaço de ferro, talhado, se torna talher, uma ferramenta intermediária entre as mãos e o alimento e que começa a ser usada só a partir do séc. XI.

Transformamos objetos e atribuímos utilidades a eles; utilidades essas ligadas tanto à sobrevivência quanto a valores caros a nós – beleza, segurança, praticidade, pertencimento, troca…

Conexão com desejos, consigo

O primeiro ímpeto de conexão nasce de dentro, de desejos internos. Para se conectar consigo, a Revolução Artesanal promove espaços de fazer manual e refletido como o Caminho do Autor, o Festival do Fazer, entre outros.

O fazer manual mobiliza a elaboração de um dos desejos mais íntimos de conexão do ser humano: o de aceitação. Aceitar-se a si mesmo, aceitar o que acontece no percurso do fazer e aceitar o olhar do outro. A aceitação é leve e exigente ao mesmo tempo. Aceitar gera movimento: podemos errar um ponto da trama de um cachecol de tricô e incluir essa falha no percurso de criação, ou então podemos decidir desmanchar a peça e começar de novo. A leveza vem da simplicidade do “é assim, é isso” e da naturalidade do movimento de escolha a partir desse reconhecimento. Parece fácil, mas chegar ao “certo, é isso, então…” é complexo porque exige esforço de nós. Exige rendição.

Render-se diante do nosso fazer, da forma como ele acontece nos conduz ao estado de apreciação. Apreciar o percurso e o resultado do fazer, qualquer que ele seja – recorda o amor fati* de que fala Nietzsche. E com a apreciação também nasce o sentimento de autoria (“eu que fiz”), a força de se reconhecer no seu fazer. Lembro a história de Ciça e sua mãe, mãe e filha bordando juntas os pedidos de um conjunto de panos de prato, sempre com figuras semelhantes que, ao final, compõem uma coleção. Antes de embalar para entrega, Ciça colocava todos os panos sobre a mesa e apreciava a obra completa: “Que bonito que ficou!” – celebrando o resultado seu fazer.

Ressignificando Descartes: Eu me rendo, logo aceito. Apesar de reconhecer que essa equação de causa e consequência é mais complexa do que se escreve aqui, ela parece se aplicar, por exemplo, na forma como olhamos nossos erros e como recebemos o olhar do outro sobre nosso fazer. E aqui chegamos ao segundo desejo íntimo de conexão do ser humano: pertencimento.

* “Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas. Amor-fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!“ (Nietzsche, Gaia Ciência)

Conexão com o outro e com o mundo

Que relações nosso fazer aviva? Reformulando a pergunta do título inicial, queremos explorar o sentimento de pertencimento, que parte do desejo de sermos vistos e incluídos numa comunidade (“comum unidade”).

A conexão com o outro se expressa, sobretudo, nas histórias que contamos uns aos outros. As histórias criam elos entre identidades, entre semelhantes e diferentes. Compartilhamos diversas histórias para dar significado ao nosso fazer no mundo. Unimo-nos por causas em comum e por culturas que nos conectam com um mundo novo.

A troca de histórias também acontece nas relações de consumo. Onde depositamos/investimos/gastamos nosso dinheiro? Verbos diferentes manifestam formas de compra diferentes. Será que estamos conscientes da força do nosso consumo? Em conversa com a Revolução Artesanal no canal Comover, a Paula Dib conta de quando comprou os primeiros candeeiros artesanais de Cícero, filho de Mestre Maurício (e reconhecido como Tesouro Vivo da Cultura do Ceará), depositando energia para que a arte de seu pai e de toda uma geração continuasse viva. O dinheiro investido no pequeno produtor é energia de manutenção de fazeres manuais singulares, verdadeiros tesouros de nossa cultura. Nossas relações de consumo nos contam das histórias que desejamos continuar, do que nos sustenta e do que dá sustento ao outro.

O que você faria diferente sabendo seus fazeres promovem elos? Nossos fazeres constroem relações conosco, com o outro e com o mundo. Relações são vínculos, pontos de conexão que decidimos ativar em nós. E essa decisão só acontece quando permitimos nos afetar. É no encontro de nós (pronome e substantivo) que a verdadeira relação acontece.

ARTESANAL - MANIFESTO

As mãos como ponte dos afetos de dentro para fora
dão forma ao pensamento, à singular expressão.

O artesanal mobiliza o que há de mais humano em nós:
imaginar, criar e fazer,
dar sentido às emoções, memórias, relações,
dar formas, cores, sabores, funções,
dar movimento e beleza.

Nosso ativismo artesanal acontece no “fazendo”:
no olhar sobre e para o mundo,
na escolha de como consumimos e ocupamos o mundo,
na valorização do pequeno, do local e do autoral,
no manejo do corpo com as ferramentas e os materiais,
no aprendizado com o erro, a repetição e o tempo do fazer,
no contato com a natureza e nossas raízes artesãs.

É no “fazendo” que nos colocamos
corajosamente em atrito com o nosso fazer;
é no “fazendo” que transformamos
as coisas, a nós mesmos e o mundo para,
aos poucos,
reacender a sabedoria que está dentro de nós,
de cada um de nós,
de nossa ancestralidade e
do que queremos criar com sentido neste mundo.

Por um mundo feito à mão, um mundo feito por nós!