Quando o fazer artesanal gera satisfação? E quando o mesmo fazer gera desconforto? No trabalho artesanal, há um fenômeno em comum na condução dessas sensações opostas: a repetição.
A cabeça é o órgão das trocas, mas o coração é o órgão amoroso da repetição.
(Deleuze, 2006, p. 11).
Repetir é uma ação com várias nuances. Repetimos para reproduzir uma peça (produção de várias peças de um modelo, de uma receita) e repetimos um modo de fazer próprio que pode gerar peças únicas ou apenas peças ligeiramente diferentes entre si. Entre a repetição do mesmo produto e a da mesma representação há o artesão, que também se repete e, com isso, move afetos.
É preciso pensar a repetição com o pronominal, encontrar o Si da repetição, a singularidade naquilo que se repete, pois não há repetição sem um repetidor, nada de repetido sem alma repetidora.” (Deleuze, 2006, p. 31).
Os afetos da repetição podem emergir de questões temporais, como lemos no artigo Tempo, tecelão do fazer que diz que “quando fazemos algo com as mãos, somos autores do nosso tempo”.
Há uma necessidade de lidar com o tempo no processo artesanal que é influenciada pelo destino e pela quantidade do que será feito. Por exemplo, na produção de uma ou de várias peças para uso próprio, ou para presentear, ou ainda para vender (a venda abre ainda outro leque de destino: por encomenda, para feiras, para lojas…).
No caso de peças personalizadas para venda (quando são encomendadas ou planejadas várias peças da mesma peça), o artesão lida com o próprio tempo em relação ao tempo de fora, o prazo do outro, do comprador/da feira.
Ele estrutura e gere seu tempo influenciado por expectativas e dinâmicas que estão além dele, como sua visibilidade, suas finanças, entre outros fatores que interferem em seu processo artesanal.
Nesse caso, a repetição enquanto replicação geralmente conduz o fazedor ao cansaço, à dor física causada pelos movimentos repetitivos do corpo (mãos, braços e ombros são frequentemente os primeiros a manifestar esses sintomas), a um mal-estar emocional e psíquico – uma verdadeira “ressaca” do fazer artesanal.
Ressaca que nasce de questionamentos do tipo:
- Como faço xx produtos do mesmo modelo e torno únicos cada um deles?
- Como trabalho a singularidade de cada peça e dou conta do prazo?
- Como precifico o valor da singularidade de cada peça?
- Que questões nascem pra você quando entra na “ressaca” da sua prática artesanal?
Ainda falando da dimensão temporal na produção artesanal, há a repetição que expande o tempo presente, mantendo o fazedor em estado de fluxo no aqui e agora, um presente que se recria a cada movimento.
Trago aqui o exemplo das artes do tecer, como crochê, tricô, bordado etc.: os pontos se repetem e vão construindo a peça recursivamente. Ao mesmo tempo que os pontos são sempre os mesmos, eles são sempre outros na trama que constroem.
Ao longo do percurso, o fazedor observa seu caminho, escolhe se muda de cor, se muda de ponto, percebe que esqueceu um ponto, decide se desfaz ou se continua a peça depois de reconhecer as imperfeições do processo. Da repetição do mesmo ponto, nascem múltiplas: a manta, a bolsa, o cachepô, o cachecol, o desenho bordado no pano de prato…
Na experiência do Tricô de braço que oferecemos no Mini Festival do Fazer, convidamos a observar seu processo de tecer próprio, usando seus braços como instrumento.
Esta forma de repetição, mais dinâmica e vertical, geralmente conduz o fazedor à satisfação de estar consigo mesmo, de entrar num campo de “serenidade que vira um todo” – o campo da plenitude.
Afetos movidos por questões temporais mobilizam também questões autorais.
A repetição ligada à replicação de várias peças artesanais da mesma peça-modelo pode conduzir o fazer artesanal a um processo quase maquinal, tirando a singularidade de cada objeto que nasce do fazer.
Já a repetição de um mesmo fazer – do mesmo tecer, do mesmo serrar, do mesmo estampar, do mesmo encadernar etc. – que gera peças diferentes ou com traços diferentes entre elas carrega a autenticidade, a relevância, o estilo e a história do fazedor[1].
Em ambos os casos, o artesão cuida de sua prática artesanal a fim de tornar presente a satisfação e o reconhecimento de sua autoria no seu fazer. Já dizia o filósofo Gilles Deleuze:
“Repetir é comportar-se, mas em relação a algo único ou singular, algo que não tem semelhante ou equivalente. Como conduta externa, esta repetição talvez seja o eco de uma vibração mais secreta, de uma repetição interior e mais profunda no singular que a anima.” (Deleuze, 2006, p. 11).
No fazer que se repete, acertos e erros revelam o fazedor por trás de cada movimento, de cada peça, de cada produto. Mesmo no fazer que replica e reproduz vários exemplares de um mesmo, cada peça carrega traços de quem a manejou: na rebeldia de um ponto que escapa, de um traço de cola escorrida, de um lado levemente torto, de um talhinho no canto da peça…
O fazer que se repete dá corpo e alma à obra do fazedor, que se reconhece autor ao terminar uma peça, que contempla o fim de um ciclo ao concluir uma encomenda. A repetição em suas diversas nuances conta a história do que é humano no fazer artesanal.
[1] Deleuze reflete sobre a dinâmica do sujeito da repetição e afirma que é preciso pensar a repetição como pronominal. A partir disso, o filósofo distingue dois modos de repetição, sobre os quais nos debruçamos neste artigo: “A primeira repetição é repetição do mesmo e se explica pela identidade do conceito ou da representação; a segunda é a que compreende a diferença e compreende a si mesma na alteridade, na heterogeneidade de uma “apresentação”. […] Uma é estática, a outra é dinâmica. Uma é repetição no efeito, a outra na causa. Uma é em extensão, a outra é intensiva. Uma é ordinária, a outra é relevante e singular. Uma é horizontal, a outra é vertical. […] Uma é material, a outra é espiritual, mesmo na natureza e na terra. Uma é inanimada, a outra tem o segredo de nossos mortos e de nossas vidas, de nossos aprisionamentos e de nossas libertações, do demoníaco e do divino. Uma é repetição “nua”, a outra é repetição vestida, que forma a si própria vestindo-se, mascarando-se, disfarçando-se. Uma é de exatidão, a outra tem a autenticidade como critério.” (Deleuze, 2006, p. 32).
#escritaafetiva por Carolina Messias