“O vento varria as folhas,
O vento varria os frutos,
O vento varria as flores…
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De frutos,de flores,de folhas. […]”
(Canção do vento e da minha vida, de Manuel Bandeira)
Quem está vivenciando estes tempos de isolamento físico tem percebido uma mudança nítida em sua rotina. A imersão no dia a dia dos fazeres da casa, cuidados consigo e com os seus e a continuidade ou não dos fazeres laborais nos move a sair do padrão habitual e a entrar numa nova lógica do fazer. Saímos do piloto automático, mais rápido e desatento aos detalhes, que nos cegava para a nossa forma de nos relacionar com as coisas e com os outros para experienciar os ciclos dos nossos fazeres.
Ao entrarmos juntos neste caminho novo, cujo destino ainda é desconhecido, começamos a dar passos mais lentos e a prestar mais atenção a tudo que envolve nosso dia a dia. Se antes o almoço era um intervalo do tempo de trabalho e muitas vezes nos aguardava pronto, à disposição para escolha num restaurante por quilo ou nas prateleiras de um mercado, agora é um ritual que nos convida a vários fazeres: escolher os ingredientes, prepará-los, temperá-los, aguardar o tempo de cozimento, pôr a mesa, comer e depois lavar e guardar as louças, além de lidar com sobras e resíduos (separar, reservar para novo preparo, compostar, descartar). Se o simples ato de almoçar antes envolvia poucos passos para preencher a fome num intervalo entre a manhã e a tarde, agora é tempo de um ciclo completo do fazer. Podemos observar nossos ciclos do fazer também na limpeza, no brincar e educar os filhos, no lazer e trabalho em casa – em todas as atividades que temporariamente não podem mais ser terceirizadas. O fazer em ciclos nos convida a tomar a vida nas próprias mãos.
Os fazeres automáticos podem nos poupar tempo e energia, porém nos privam de encarar muitos hábitos que vão, aos poucos, minando nossa saúde, nosso bem-estar, nossas relações. A lentificação do fazer em ciclos nos convida a sair da resposta pronta, reativa à vida, para aprender a dar respostas diferentes, a criar novos hábitos, a escolher o ritmo e a composição de nossa orquestra de fazeres. Que outra oportunidade teríamos de lidar com isso? Quando, na rotina anterior à pandemia, podíamos definir hora e frequência dos fazeres de limpar, arrumar, cozinhar, brincar, criar, descansar…? Se toda hora escolhermos limpar, não vamos brincar com os filhos; se toda hora descansarmos, não vamos ter comida pronta para comer…
Os fazeres em ciclo também nos ensinam o valor do processo e de tudo o que envolve cada etapa do começo-meio-fim de cada fazer. O paradigma da valorização da iniciativa agora está se ressignificando, pois percebemos que de nada adianta acumular começos de fazeres sem dar seguimento. Também percebemos que para chegar na também valorizada acabativa, muitas etapas e mãos se tornam necessárias. A restrição do delegar escolhas e fazeres, nos conscientiza do que estamos propondo e fazendo em nossas casas e no mundo. Se vivenciar os ciclos dos nossos fazeres nos permitir integrar só esses aprendizados, já podemos ter esperança do mundo que estamos criando na travessia destes tempos.
Escrita artesanal por Carolina Messias, com Ciça Costa e Bruno Andreoni.