O delicado e potente ativismo do fazer artesanal

Quase diariamente temos sido entulhados de notícias trágicas nos âmbitos social, político e ambiental. Desses campos, emergem movimentos denunciando eventos desse tipo e convocando à ação conjunta para intervir e buscar respostas e soluções. O foco dos movimentos ativistas costuma ser agir sobre o mundo, sobre seus problemas e seu grande valor é justamente este potencial de ação, de iniciativa e mobilização para a mudança. Mas nem todo ativismo é assim.

Há um tipo de ativismo que deseja agir no mundo, priorizando a processo do fazer como potencial transformador de si e da sociedade. Uma forma de ativismo que foca menos no resultado (futuro) e mais no processo (presente) e no modo como esse “fazendo”, mais gentil, criativo, coletivo, consciente pode fazer a diferença. 

Faça a mudança que deseja ver
Se queremos que nosso mundo seja mais bonito, gentil e justo, então vamos tornar nosso ativismo bonito, gentil e justo. Então escolha sua agulha e linha e junte-se a nós no artesanal (crafting)! Juntos, mudaremos nosso mundo um ponto de cada vez…

(Item 10 do “A Craftivist’s Manifesto”, tradução livre)

O Coletivo Craftivista (“artesão-ativista”) nasceu em 2009, a partir do trabalho de Sara Corbett no Reino Unido como ativista, depois em seus projetos artesanais e do conceito de “protesto gentil” que encontrou nesta forma alternativa de ativismo com artes manuais.

Percebemos nessa forma de ativismo “silencioso” a relação com o conceito do ativismo delicado, uma abordagem específica de mudança social inspirada na fenomenologia de Goethe. O delicado ativismo nos convoca a desenvolver um olhar menos instrumental sobre as coisas e mais para dentro do mundo interno e onde habitamos. Delicado, porém, nada “fofo”. Essa forma de ativismo pede rigor, paciência e disposição contínua para olhar as coisas do mundo não como coisas, mas como manifestações do sentido, ou melhor, de nossas interpretações. A partir dessa reflexão ativa é possível mudar o olhar para, então, criar algo novo.

A Revolução Artesanal se une a este movimento que age por meio do “fazendo”. Que busca intervir no mundo por meio do que se expressa e do que se aprende no processo dos fazeres artesanais. Une a forma de protesto gentil do artesanal-ato com o desenvolvimento de um olhar consciente sobre si, sobre o outro e sobre o mundo. É uma revolução, pois age de múltiplas formas e a muitas mãos a fim de acender a potência do criar humano; é artesanal, por isso revolucionário.

Já falamos sobre os presentes dos nossos feitos à mão: nossas mãos não são apenas uma tecnologia para colocar coisas no mundo, elas podem ser caminho e porta de entrada para revoluções internas, quando aceitamos o processo artesanal como horizonte de aprendizagem de nosso corpo, comportamentos e emoções, e externas, quando a obra criada impacta o mundo com humanidade – e humanidade na sua forma mais simples: com afeto, contato, vínculo e amor.

É essa forma de ativismo que conduzimos no projeto Ocupação Afetiva da Universidade São Judas Tadeu. Por meio de oficinas criativas com diversos fazeres manuais, agimos junto com os alunos no espaço universitário em que eles convivem. Mas o que fios, agulhas, tinta, madeira, arame e outros materiais podem mudar no dia a dia de uma Universidade? Muito. No espaço educativo e de conhecimento, geralmente se priorizam os fazeres mentais do que os manuais. Poucas são as oportunidades de observar como nosso corpo ocupa o espaço, como o colocamos em relação ao saber e às outras pessoas com quem convivemos. É aí que começa a Revolução Artesanal: com o apoio dos facilitadores, os alunos foram convidados não só a aprender uma técnica manual, mas a observar o que se construía por meio desse fazer: que emoções despertava, que pensamentos e lembranças, que força ou precisão precisava convocar de seu corpo num determinado fazer?

A Ocupação Afetiva da USJT leva esse ativismo artesanal a outro patamar: ao final do projeto, todas as criações compuseram, juntas, uma instalação artística coletiva para os saguões dos campi universitários. Todos os encontros, esforços, memórias, aprendizados, vínculos, afetos gerados ao longo das oficinas foram manifestados juntos numa obra para que todos pudessem apreciar e perceber o impacto do fazer coletivo.

Este é o nosso real ativismo: aos poucos, fazemos um mundo diferente com nossas próprias mãos. Aos poucos, cria-se vínculo entre os alunos por meio do fazer manual; aos poucos, aprende-se com o erro, com a repetição, com a ajuda do outro; aos poucos, começa-se a ouvir a si, aos sinais do corpo e das próprias mãos; aos poucos, aprecia-se o tempo do fazer e a criação em processo (sem a angústia de terminar logo para entregar); aos poucos, observam-se alunos artesãos de si; aos poucos, cria-se um olhar gentil para as mãos e o que nasce delas. O ativismo é delicado, é persistente, é “aos poucos”. Mas qual será o impacto da multiplicação desses “poucos” todos? Só o tempo dirá, mas o que estamos vendo agora é bonito mesmo de se olhar e de viver.  

[…] não apenas vemos o mundo de maneira diferente,
nós o criamos na medida em que avançamos.
(Kaplan, A.; Davidoff, S., 2014, p. 12, grifo nosso)

Escrita artesanal por Carolina Messias com Ciça Costa, Bruno Andreoni e Mayra Aiello.

Referência:
CRAFTIVIST COLLECTIVE. https://craftivist-collective.com/, 2019.
KAPLAN, A.; DAVIDOFF, S. O Ativismo delicado. Cidade do Cabo: Proteus Initiative, 2014.

ARTESANAL - MANIFESTO

As mãos como ponte dos afetos de dentro para fora
dão forma ao pensamento, à singular expressão.

O artesanal mobiliza o que há de mais humano em nós:
imaginar, criar e fazer,
dar sentido às emoções, memórias, relações,
dar formas, cores, sabores, funções,
dar movimento e beleza.

Nosso ativismo artesanal acontece no “fazendo”:
no olhar sobre e para o mundo,
na escolha de como consumimos e ocupamos o mundo,
na valorização do pequeno, do local e do autoral,
no manejo do corpo com as ferramentas e os materiais,
no aprendizado com o erro, a repetição e o tempo do fazer,
no contato com a natureza e nossas raízes artesãs.

É no “fazendo” que nos colocamos
corajosamente em atrito com o nosso fazer;
é no “fazendo” que transformamos
as coisas, a nós mesmos e o mundo para,
aos poucos,
reacender a sabedoria que está dentro de nós,
de cada um de nós,
de nossa ancestralidade e
do que queremos criar com sentido neste mundo.

Por um mundo feito à mão, um mundo feito por nós!