“O espaço começa assim, só com palavras, sinais traçados numa página branco.”
(Georges Perec, Espécies de Espaço)
Como um espaço se torna lar? Originalmente a palavra lar era o nome dado aos deuses protetores dos domicílios ligados ao local onde se acendia o fogo para aquecer e cozinhar. “Lar, doce lar” é a expressão em inglês (home, sweet home) que expressa a alegria de retornar à casa como a um porto seguro. Mas o lar não é algo dado, não surge como tal, depende de um processo interno e da relação entre quem usa o espaço e as coisas que o ocupam.
Heidegger dizia que “só é possível habitar o que se constrói”, e encaminha essa discussão refletindo que nem toda construção é habitação. E sabemos também que nem toda habitação é lar. Se apenas habitamos o que construímos, mas não costumamos participar efetivamente da obra de nossa habitação, da construção civil no sentido literal, de que outras formas podemos construir um lar?
A construção simbólica do espaço do lar começa com palavras, com desejos, projetos de criação e reforma que nascem na relação da(s) pessoa(s) com o espaço a ser habitado. Poderíamos conduzir a reflexão para como nossa forma de habitar a casa reflete nossa história e nossa cultura, ou ir pelo viés arquitetônico e pensar sobre quais hábitos nosso habitat reflete e que habitat construímos a partir de nossos hábitos, mas queremos hoje olhar para o detalhe do aqui e agora, para o afeto como guia singular da transformação de um espaço em lar. Como as coisas que te rodeiam em sua casa foram escolhidas? Que histórias elas contam sobre quem as escolheu? Que lugares essas coisas ocupam em seu lar?
Como alerta o escritor Mia Couto, “o drama é que hoje estamos deixando de escolher. […] Cada vez mais somos escolhidos, cada vez mais somos objecto de apelos que nos convertem em números, em estatísticas de mercado” (Couto, 2019, p.113). Às portas da era da consciência ética, há um convite à autorresponsabilidade e expansão da consciência. Uma tendência a questionar as lógicas de mercado e a “descoisificar” as coisas para que elas passem existir por questão de sentido da “história que se criou e se conservou ao longo do fazer na rede fazedor-forma-conteúdo-consumidor”. Observe as coisas ao seu redor. Quanta vida e calor há nelas? Você escolheu ou foi escolhido/a por essas coisas? Talvez uma parte delas seja industrializada e outra parte seja artesanal. E geralmente às que são industrializadas oferecemos nosso “toque” humano: colocamos ímãs, fotos, desenhos na geladeira; escolhemos uma manta feita à mão para cobrir nosso sofá ou nossa cama; penduramos quadros, gravuras e retratos para ornar nossas paredes; temos um caderno artesanal sobre a mesa; temos um pano de prato pintado à mão com bico de crochê na cozinha; temos um par de canecas de cerâmica que compramos de um artesão…
Artesanalmente, vamos compondo nosso lar com histórias: coisas que compramos, coisas que reciclamos, coisas que ressignificamos, coisas que herdamos, coisas que trocamos de lugar, coisas que guardamos, coisas que esquecemos (e depois redescobrimos), coisas emprestadas, coisas presenteadas, coisas feitas por outros e coisas feitas por nossas próprias mãos.
O que nossas coisas espelham de nós?
Venha explorar esse espelhamento seu nos fazeres artesanais. Dia 2 de novembro, convidamos todos a estarem conosco no Mini Festival do Fazer – Raízes Artesãs! O evento será o dia todo, das 9h às 19h30, na Vila da Terra em São Paulo. Vamos olhar para o feito a mão como caminho de desenvolvimento e ser humano por meio de oficinas artesanais e rodas de conversas. Entre em contato com as suas Raízes Artesãs e descubra-se em novas habilidades e no processo de criar e fazer com suas próprias mãos. Afinal:
“As Coisas devolvem-nos o que nelas procuramos. Parecem-nos indiferentes porque a olhamos com um olhar indiferente. Mas, para olhos atentos, tudo constitui um espelho; para um olhar sincero e grave, tudo é profundidade.” (Bachelard)
Com olhos atentos às coisas que ocupam nosso lar, percebemos quais têm mais vida e quais conservam os sentidos da palavra “lar”: calor, acolhida e proteção.
Escrita artesanal por Carolina Messias, com Ciça Costa e Bruno Andreoni.