A mãe como ponto de origem de onde toda história começa. Afinal, toda pessoa é filha de alguém e no tanto de si que aporta ao mundo carrega um pouco dessa/e outra/o que foi lugar de espelhamentos e desenvolvimento. Jô Masson, coordenadora da ArteSol há mais de uma década, reconhece bem seu papel de filha e mãe, tanto que é lembrando da influência de sua mãe que inicia essa conversa conosco. O olhar sistêmico para os processos e de cuidado com o outro a conduziu para o universo da Terapia Ocupacional, sua grande base para olhar o ser humano, entendendo suas limitações e potencialidades:
“Gostava do universo da atividade expressiva, de como esse mundo subconsciente vai se manifestando, e muito das atividades nas comunidades, creches, escolas”, afirma. Ela trabalhou por muitos anos como terapeuta ocupacional, envolvida em projetos que convocavam sua visão sistêmica para a comunidade, a escola, o professor, o agente, o educador… Para ela, a terapia ocupacional foi a base que lhe permitiu se mover pelos universos da cultura, da arte, do indivíduo, da tradição, da questão urbana, do mercado, além de lhe trazer a noção de reestruturação.
Uma lente sistêmica e criativa conduz as mãos por outros fazeres
Na terapia ocupacional, encontrou o fazer como centro restaurador e recuperador das pessoas através de atividades artísticas, expressivas. Com sua visão inovadora e sistêmica, mudou a lente da APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) de São Paulo, onde geriu o Programa Arte, Cultura e Esporte por mais de 3 anos, para as oficinas terapêuticas: da repetição de uma atividade ocupacional para a criação, algo mais elaborado.
“Houve uma transição de oficinas abrigadas para atividades expressivas. Um olhar para essa atividade de outro ponto de vista. A proposta era colocar essa atividade num outro lugar para essas instituições”, conta Jô.
E essa lente e prática também a moveu até o trabalho com os artesãos na ArteSol (Artesanato Solidário), percebendo e se movimentando nesse campo.
A arte de articular modos de ver e fazer
A ArteSol também teve uma mãe (fundadora, língua institucional): Dra. Ruth Cardoso a concebeu em 1998 e, ao longo dos anos, a comunidade foi se tornando organização (Organização da sociedade civil de interesse público, em 2002) e alcançando uma centena de projetos desenvolvidos em mais de 17 Estados do Brasil. Jô entrou na ArteSol com o desafio de mirar o futuro da organização, gerindo o presente sem perder a essência e o legado de sua fundadora.
Ela conta que já tinha boa visão de gestão quando foi selecionada para ser coordenadora executiva da instituição, mas enfrentou o desafio da transição. “Qual a missão? Havia uma crise de identidade; Dra. Ruth havia acabado de falecer” – e nesse cenário ela corajosamente fez perguntas importantes para definir o rumo da organização – “Essa causa ainda é relevante? Entender o universo da tradição, esse universo, o público dele, o que o artesanato representava, quem eram os artesãos, em termos simbólicos, de identidade, de geração de renda, de desenvolvimento”, ela explica que era uma fase em que tudo precisava ser revisado.
Seu trabalho sempre foi permeado pela multidisciplinaridade e essa foi uma grande força para as articulações necessárias na nova fase da ArteSol, integrando todas as pontas do processo, pois, como ela explica: “não dá para fazer aqui sem costurar aqui, não dá para fazer um produto incrível se o mercado não quer comprar, o mercado não vai comprar uma coisa que não conhece então não tem como não fazer um trabalho de divulgação.”
A potência de sua articulação entre artesãos, mercado, políticas públicas, sociedade vem de seu profundo envolvimento nos projetos, indo a campo, ouvindo os atores desse sistema, e também de seu questionamento contínuo na gestão: “Me divido hoje entre a área muito técnica, relacionada ao universo dos artesãos, da técnica e dos processos deles, de onde moram, matérias-primas. Sou muito apaixonada por essa temática. E, ao mesmo tempo, tenho que olhar para a questão da liderança, sustentabilidade, gestão e ArteSol como instituição.”
Na tessitura dessa rede de relações, saberes e fazeres, ela vai compondo uma história viva, que move a si, aos artesãos e à cultura artesanal.
Artesãos em rede
Hoje ArteSol é uma rede nacional do artesanato cultural brasileiro. Jô Masson segue alinhavando essa rede buscando “como é entender o processo de rede e estar dentro desse processo, como essas dinâmicas vão se dando e como eu acredito que não tem outra forma que não seja essa.”
Na composição dessa rede, ela conta do desafio que já foi promover protagonismo e autonomia dos membros e que, aos poucos, os próprios artesãos foram ocupando seus espaços de fala e atuação, pois passaram a acreditar na própria potência:
“Os artesãos estão saindo desse lugar, entendendo que é de verdade que são protagonistas e guardiões da tradição. Eles não sentiam, não se apropriavam disso. Mas parece que deu um estalo. Não é o outro que vai falar, eles que precisam falar e acreditar.”, afirma Jô, que reconhece no espaço da rede a criação de ambiente afetivo, acolhedor, promotor de identificação, confiança tal que abre espaço para que a autonomia floresça nos artesãos. E tão bonito quanto ver esse florescimento no outro é perceber que esse efeito também acontece na organização e nela mesma, enquanto coordenadora e mãe. É essa revolução que o artesanal promove: a transformação sistêmica que afeta todos os envolvidos, no mesmo compasso e sentido, sem deixar ninguém para trás. Com o fortalecimento da autoestima dos artesãos e seus movimentos de autogestão, Jô e a ArteSol também se fortalecem, atualizam sua atuação e contribuição nesse ecossistema artesanal.
Jô falou também sobre a qualidade de transformação que ela vivenciou e promoveu na ArteSol: “Foi a transformação de um espaço. Uma criação com muito respeito ao legado, pois a tradição precisa se manter em movimento. É a mudança da tradição que a mantém, não a estagnação. Movimento e tradição continuam por novas gerações, leituras, produtos, processos.”
Tradição e transformação
Há de ser sensível para mesclar tradição com inovação. Uma sensibilidade corajosa de dançar entre o risco da mudança e o respeito à história. Nessa dança, Jô compreendeu a tradição só permanece viva quando está em movimento e se transforma com o caminhar da vida:
“A tradição vai se atualizando. Olho para minha mãe, para mim e para minha filha. Que uso cada geração fez desse conhecimento? […] Tradição é viva, não é estática, cada geração reedita a história de vida e das relações e como isso se materializa na peça que ela faz.” – Tudo se transforma: a matéria-prima, o artesão, a comunidade com quem se vive – “e uma das coisas que mais me encanta é esse processo do fazer, o tempo dessa construção, e os artesãos desvendaram esse conhecimento”, diz.
Jô também conta que se conectar com o processo artesanal gerou conscientização sobre várias questões: a do tempo, da origem, da condição humana (“quem fez, em que condições?”), dos processos (“o que está por trás de algo que chega para mim pronto?”), da utilidade, da relação com a casa, com as coisas, do consumo…
Ela conta que passou a adornar a casa com objetos de artesãos que ela conheceu de perto e o quanto isso mudou seu envolvimento com as coisas e a conexão que têm com sua casa hoje, pois cada objeto se torna guardião de uma história, não tem apenas uma função utilitária ou estética, ele preenche de sentido o lugar que é escolhido para estar.
Essa relação com o artesanal foi corpando nela essa prática de articular tradição e inovação na coordenação de projetos e pessoas na ArteSol também:
“Escuta e atenção, respeito ao outro, sair dessa arrogância de que a gente sabe o que é bom pro outro. Como a comunidade está envolvida no desenho desse projeto? O outro sabe o que é bom pra ele. Ele pode pedir o apoio que faz sentido pra ele”, explica.
O artesanal no virtual
Desde que a pandemia começou, muitos artesãos da Rede já estavam familiarizados com o ambiente virtual e se movimentaram para seguir em frente com seu fazer artesanal. Houve um impacto grande, pois até o início de 2020 as feiras, eventos e festivais em torno das manualidades e artesanias estavam bastante aquecidas. Com a necessidade de distanciamento físico, comércio fechado e cancelamento de eventos, a migração para as redes sociais e plataformas de webconferência foi o caminho que artesãos encontraram para se encontrar, trocar saberes e pensar em formas de chegar até o consumidor final. O grande desafio está na carência dos encontros presenciais e dos sentidos do tato, olfato e paladar, fundamentais para a valorização dos fazeres artesanais e, consequentemente, a troca comercial que faz a roda da economia artesanal girar.
Mesmo nesse cenário contraditório do artesanal no mundo virtual, houve um fortalecimento da cultura artesanal, pois o virtual possibilitou encontros de pessoas de lugares totalmente diferentes, descentralizando também a cena artesanal dos grandes centros urbanos em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Pernambuco, por exemplo. A Jô contou orgulhosa de uma reunião com mais de 93 artesãos presentes de várias partes do Brasil e o quanto eles mesmos têm se autogerido e impulsionado a florescer.
Ela sabe (e nós também) que há muito trabalho a ser feito, muita rede ainda por tecer para além da “bolha do algoritmo”, mas reconhece o grande valor que há no fortalecimento da classe artesã, a ampliação dessa temática e no privilégio de atuar num fazer que transforma e que a transforma:
“Saber que pode florir porque tem a raiz. E transformar sem perder a essência.”
(Jô Masson)
Esta entrevista com a Jô Masson compõe nossa série “Por Artesanias Brasileiras”, em que convidamos e escutamos histórias de pessoas que fomentam, trabalham e valorizam os campos das artes manuais no Brasil.
Escrita artesanal por Carolina Messias, com Jô Masson, Ciça Costa e Bruno Andreoni.