Adélia Borges, tecelã da cultura artesanal brasileira

Encantamento.

A primeira palavra-ponto desta entrevista tecida com Adélia Borges, uma mulher brasileira, que dedica já metade de sua vida a criar elos entre o design artesanal e a sociedade, por meio de artigos, livros, aulas, palestras e exposições. A primeira mulher a receber o título de Doutora Honoris Causa pela Unesp, simbolicamente no dia 8 de março de 2021, compartilhou conosco sua história e fazer artesanal com palavras, design e pessoas. Partilhamos com ela do encantamento pelo feito à mão, “essa capacidade que o ser humano tem de fazer coisas para o seu dia a dia”, como ela diz.

 

   “É preciso enxergar atrás da Serra”.

O mantra que Adélia lembrou da fala de seu pai na Solenidade de Outorga do título também é importante para alinhavar sua história. Nascida em Cássia (MG), filha de pais trabalhadores dedicados à área rural e depois ao comércio, Adélia iniciou seu percurso escolar em Ribeirão Preto (SP) em escola pública, onde atuou no movimento estudantil, e seguiu a carreira de jornalismo em importantes veículos de comunicação, desde 1972, período da ditadura, como Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Semanário Movimento, Fundação Carlos Chagas (Jornal Mulheril), TV Globo e Cultura, sempre se dedicando a pautas sobre as mulheres, gênero, direitos humanos, entre outras. O território do Design se apresentou para ela em 1987, na Editora Projeto (Revista Design de Interiores), e ali percebeu a grande Serra que havia diante dos leitores, que achavam que não existia design no Brasil. Ali, atrás da Serra e da censura, Adélia viu o mundo que queria tecer: um mundo feito por mãos brasileiras.

 

Revolução.

A palavra que conta da trajetória decolonial de Adélia – como qualificou a arte-educadora Ana Mae Barbosa – por sua dedicação à arte e cultura genuinamente brasileiras, nos une em nossa visão e fazer de mundo: um artesanal que não se importa de fora, mas que se faz desde dentro de cada um de nós, de nossa origem até o modo como criamos, transformamos e imprimimos nossa história e nossa cultura em nosso dia a dia. Adélia traz o exemplo dos artefatos indígenas e das tradições artesanais de origem mais pobre, “que carregam simbologia e riqueza formal, estética, que traz uma visão de mundo”, porém, por muito tempo, pelo fato de vivermos numa sociedade escravocrata, não foram valorizados por não serem comunicados pro mundo, narrando e reconhecendo o valor de sua história.


Bancos Indígenas: Entre a função e o rito – 2006 :: Foto Mariana Chama e Milton Guran

 

Linguagem.

Nossa conversa passa por esse tema e o quanto as palavras que usamos carregam bagagens muitas vezes difíceis de desapegar. Adélia lembra da carga pejorativa da expressão “sujar as mãos”, advinda de anos de terceirização de trabalho manual a pessoas com menos privilégios, mais pobres, a quem se destinava (e ainda se destina em nossa cultura, infelizmente), trabalhos que não se desejam fazer com as próprias mãos. Conversamos também sobre o preconceito que ainda cultivamos por aqui em relação ao termo “artesanato”, mais valorizado muitas vezes por quem vem de fora do que por nossos companheiros de território. Para que uma nova linguagem se estabeleça, ela propõe o caminho da reeducação do olhar. “A gente carece ainda de movimentos e de mídia, ações para valorizar esse fazer. É o que procuro fazer na minha trajetória. No design brasileiro, da América Latina, do Hemisfério Sul, no design africano, a força do feito à mão é muito grande, é muito potente”, afirma Adélia.

EntreMeadas – 2019 :: Foto: Mariana Chama

 

Valorização e valoração do artesanal.

“Pra gente conhecer algo, é preciso reconhecer”, esse é o caminho que Adélia vê para despertarmos nosso olhar para o valor do artesanal, isto é, se reconhecemos todo o trabalho, a tradição em que se insere, as etapas envolvidas e o tempo dedicado à criação de um produto artesanal, o fator preço se torna secundário aos nossos olhos. A “informação” é a palavra-ponto que Adélia alinhava nesta temática e nos traz o exemplo da forma como essa informação é transmitida, por exemplo, numa exposição que concede aos objetos artesanais “a dignidade que lhes é devida”, em livros, artigos, posts, pois “com isso, a gente vai descobrindo esse mundo e compartilhando esse conhecimento com outras pessoas”, aponta. Outro exemplo que ela traz é do MASP Loja. Desde 2016 como curadora adjunta do MASP (Museu de Arte de São Paulo), Adélia abriu caminhos para que o espaço recebesse produção de comunidades indígenas, tradicionais e também de artistas urbanos: “Lá cada produto é acompanhado de uma etiqueta e essa etiqueta conta aquela história. Você pode até levar só a história da etiqueta, para aprender sobre aquela produção, sem levar o produto, se quiser”, conta. Também tratando da valoração do artesanal ligada à informação, Adélia cita o site e a rede Artesol, “referência obrigatória para quem quer conhecer os grupos artesanais atuantes no Brasil”, que promove oficinas para ajudar as comunidades a precificar valorizando seu fazer artesanal, bem como alguns Sebraes estaduais (ela enfatiza o do Piauí e do DF) que oferecem oficinas de gerenciamento e estoque de matéria-prima para artesãos.


Foto Victoria Negueiros/MASP

 

Autoria.

O despertar e o caminho desse ser que cria e faz com as próprias mãos são muito caros para nossa Revolução Artesanal. Sobre esse tema, perguntamos para Adélia sobre a questão da autoria individual e coletiva entre designers e artesãos. Ela conta que é importante cuidar de manter o diálogo entre essas duas figuras para não virar um monólogo e uma relação desigual, quando há apropriação da técnica ou da história de uma comunidade local, como tece no capítulo Relações delicadas de seu livro Design + artesanato: o caminho brasileiro. “Os projetos mais bonitos são esses que nascem realmente uma troca entre as pessoas” – defende. Ela também lembra o exemplo de figuras que se destacam na própria comunidade, por exemplo, a mestre artesã dona Irinéia, uma das mais reconhecidas artistas de cerâmica popular brasileira, que vive no Quilombo Muquém, em Alagoas. Numa ocasião na Fenearte (Feira Nacional de Artesanal), em Recife, Adélia encontrou a artesã que lhe ofereceu uma panela de cerâmica, dizendo muito humildemente: “se você cozinhar um feijão nessa panela, fica muito gostoso” –  ou seja, mantendo seu fazer manual tradicional, como é comum na região a produção de panelas e cuscuzeiras artesanais, e fortalecendo sua autoria individual no trabalho com as esculturas.


Puras Misturas – 2010 :: Foto: Mariana Chama

 

Retomando o trabalho manual.

Conversamos também sobre como a cultura artesanal está reacendendo entre pessoas de classe média, alta e intelectuais na contemporaneidade. Adélia lembra do ensaio “Elogio da mão”, do francês Henri Focillon, que fala como a mão é importante no ato da criação, como a mão pensa e chega à fala. Ficamos encantadas ao tecer justamente o ponto que a Revolução Artesanal busca dar em todos os percursos e conteúdos que alinhava: “para além do produto que você vende e cria, você vende, cria e leva uma história”, complementa Ciça, destacando também o processo artesanal em muitas esferas da arte e do cotidiano. Adélia acredita que essa retomada do artesanal no trivial do dia a dia “se acirrou muito nos últimos anos, desde antes da pandemia, por esse excesso de estar atrás de uma tela, essa coisa etérea, remota e digital nos traz um desejo de coisas reais, que podemos tocar”.


Cerâmicas do Brasil – 2015 :: Foto: Mariana Chama

 

Aprendizado.

O que acontece no encontro, na troca real, onde os envolvidos são respeitados e ouvidos por saberem o que sabem, não porque um tem mais “chancelas” ou mais experiência que o outro. Ciça lembra o valor dessa troca verdadeira, que acontece no cuidado na relação com o outro. O fazer manual e artesanal não está só em produzir algo, mas também em como cuidar do dia a dia, de uma atitude e postura presentes que afetam também o modo como se cria e produz algo no mundo. O aprendizado que acontece no intercalar e integrar diferentes fazeres artesanais (laborais e cotidianos) se potencializa, como conta Adélia sobre os momentos de respiro de seu trabalho com manualidades que gosta, desde cerâmica, bordado até lavar a louça, e lembra “é interessante que, às vezes, é nessa hora que aquela ideia que estava te faltando vem, surge, porque você relaxou, parou de perseguir aquela palavra que estava buscando”.

 

Silêncio.

O valor da pausa, que não é parar, é mudar de caminho. Em nossa cultura ainda não valorizamos tanto a pausa como em outras, como lembra Adélia da palavra “ma” em japonês que significa intervalo, espaço, silêncio, que é de onde nascem possibilidades. O artesanal só é possível quando abrimos espaço para esta qualidade de silêncio.

Educadora do homem, a mão o multiplica no espaço e no tempo.” (Focillon, 2012, p. 34)

 

Adélia Borges, agradecemos sua disponibilidade para tecer conosco essa trama de palavras tão ricas para o universo artesanal. Sua trajetória, fazeres e reconhecimento nos fortalecem a seguir fazendo uma Revolução Artesanal. O encontro contigo nos inspira a abrir esta série “Por Artesanias Brasileiras”, em que convidamos e escutamos histórias de pessoas que fomentam, trabalham e valorizam os campos das artes manuais no Brasil. 

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Escrita artesanal por Carolina Messias, com Ciça Costa e Adélia Borges.

Fotos da capa e de Adélia Borges: Mariana Chama

ARTESANAL - MANIFESTO

As mãos como ponte dos afetos de dentro para fora
dão forma ao pensamento, à singular expressão.

O artesanal mobiliza o que há de mais humano em nós:
imaginar, criar e fazer,
dar sentido às emoções, memórias, relações,
dar formas, cores, sabores, funções,
dar movimento e beleza.

Nosso ativismo artesanal acontece no “fazendo”:
no olhar sobre e para o mundo,
na escolha de como consumimos e ocupamos o mundo,
na valorização do pequeno, do local e do autoral,
no manejo do corpo com as ferramentas e os materiais,
no aprendizado com o erro, a repetição e o tempo do fazer,
no contato com a natureza e nossas raízes artesãs.

É no “fazendo” que nos colocamos
corajosamente em atrito com o nosso fazer;
é no “fazendo” que transformamos
as coisas, a nós mesmos e o mundo para,
aos poucos,
reacender a sabedoria que está dentro de nós,
de cada um de nós,
de nossa ancestralidade e
do que queremos criar com sentido neste mundo.

Por um mundo feito à mão, um mundo feito por nós!