Uma geleia, um fazer, muitos significados

Uma geleia, um fazer, muitos significados

Estou fazendo geleia. Sim, com frutas da época, açúcar cristal, no tacho de cobre.

Minha mãe não era muito de fazer geleia, mas ela adorava fazer doces em calda, de qualquer fruta… doce de mamão verde, de figo verde, abóbora, pera com vinho tinto… Humm! Esta compota em particular era divina. Ela [minha mãe] adorava comer e como todo comilão adorava cozinhar, servir, estar à mesa. Cozinhava como ninguém, os aromas e sabores de sua comida eram algo que palavra nenhuma consegue descrever, tudo era uma delícia. Muito do seu cozinhar aprendeu com a Nona, inclusive os doces em calda. No sítio onde viviam havia muitas frutas e como nada se desperdiça, tudo se transformava em algo gostoso para comer e, quando na abundância da safra, era o momento de presentear os vizinhos e ou convidar para um café com compotas.

Ela dizia para mim que doce em caldo se faz em tacho de cobre, que ele era o responsável pela cor avermelhada e pelo brilho do doce, sabe aquele brilho que enche os olhos? Esse mesmo. Tinha ali um segredinho, para além do tacho de cobre, algumas gotinhas de limão dão o brilho vitrificado do doce.

Uma vez pedi para ela escrever no livro de receitas todas as receitas de doces em calda que ela fazia, naquele momento queria ter tudo registrado para não perder nada e Ela me dizia:
– Posso escrever mas é muito fácil, faço tudo meio de olho.
– E é tudo muito fácil, água açúcar e fruta, deixe ferver e dar o ponto, quando começa soltar da panela. Faço tudo meio de olho, mas vou tentar dar uma dimensão de quantidade” e sorriu. Com o passar do tempo encontrei em seus cadernos de receitas, as receitas dos doces em calda.

Muitas vezes, fizemos juntas os doces e estar ao seu lado fazendo vivenciei as receitas dos doces e o seu jeito de fazer. Com Ela, aprendi a cuidar das frutas, lavar, cortar e secar. Aprendi a base da calda e o que poderia ser as quantidades do que ela falava “meio no olho”, algo tipo um copo de água, para dois de açúcar, para duas mãos cheias de frutas. Aprendi a dar o ponto, quando a calda começa a engrossar e descolar do fundo. Aprendi a alegria e o prazer de fazer doce em calda e poder servir como sobremesa, de poder presentear os amigos. Aprendi que, com carinho no fazer, o doce fica mais gostoso. Aprendi que todas as frutas, por menos que eu tenha acesso, podem virar uma experiência e uma descoberta no mundo das geleias e compotas. 

Com o aprendizado deste fazendo, me desbravo pelo mundo das geleias e doces em calda. Na minha casinha da floresta me desafio, com meu jeito de fazer em transformar o cupuaçu, o caju, jambo e outras frutas em calda e/ou geleia. Frutas que minha mãe nem imaginava que um dia teríamos em abundância no quintal de nossa casinha.

Hoje, ao começar a fazer uma geleia, uso por base o que aprendi naqueles dias com minha mãe, do conhecimento e sabedoria que eram só dela e que hoje vive em mim. 

Às receitas, acrescento outros ingredientes que ao longo do meu caminhar vou aprendendo no encontro com o outro e conhecimentos vindos de outros lugares. E assim, me parece que a sabedoria de cada um vai se fazendo.

Para fazer a geleia de uvinha preta, hoje, usei aproximadamente dois pratos cheios de uvas… lavei, sequei, desgalhei… Coloquei-as em um tacho de cobre com um pouco de água, deixei ferver por alguns minutos… Ao esfriar, bati no liquidificador e peneirei… Voltei o caldo ao tacho, acrescentei em torno de três copos de açúcar cristal orgânico… Deixei fervendo até dar o ponto. Higienizei os potes reutilizados e acondicionei a geleia.

Não fui buscar a receita no livro de receitas, o qual guardo com muito amor. Este fazer na cozinha está dentro de mim. Toda nova receita, toda nova descoberta de ingrediente, o sentido e o jeito de fazer, vem do que vivi e aprendi no ninho de minha família de origem. Isso me diz do sentido do fazer e seus significados.

Em tempos de cuidado social em que vivemos dentro de nossas casas, muitas sugestões surgem para passarmos o tempo. Limpar a casa, os armários, gavetas, caixas. No universo on line programações infinitas, canais abertos, visitas virtuais à museus, dicas de filmes, contação de histórias para as crianças, encontros virtuais… No fazer artesanal e manual, ahh!! quantas coisas, não é mesmo?! Tricô, crochê, desenhar, tecer, bordar, tingir, estampar, cozinhar, costurar… uma infinidade de fazeres. Parece que temos neste momento muito tempo para fazer, para criar, projetar, alinhavar futuro, além de reaprender a nos relacionarmos com o tempo.

Em todos estes fazeres me pergunto qual o sentido do fazer em tudo que fazemos. Qual o significado de limpar um armário, fazer um tricô, ver um filme e o que este fazendo está dizendo sobre nós, enquanto estamos fazendo algo com nossas mãos?

Fazer, criar, projetar, refletir, alinhavar futuro com sentido, propósito, consciência, humanidade. Que movimento a vida está pedindo de nós, hoje!

Crônicas do Fazendo por Ciça Costa
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O seu fazer, refletindo quem você é.

Inspirados por esta crônica, queremos convidar a todos para compartilharem suas reflexões manuais em forma de escritas, poemas, desenhos, crônicas do fazer-fazendo que delicadamente traz pitadas sobre o que o fazer te faz.

Nossa ideia é que esses materiais possam compor uma produção coletiva sobre o nosso fazer e o que ele é capaz de nos revelar como seres humanos. Para fazer upload de seu arquivo acesse aqui ou se preferir envie para contato@revolucaoartesanal.com.br ou pelas redes sociais @fazerartesanal.
Boas reflexões manuais!

ARTESANAL - MANIFESTO

As mãos como ponte dos afetos de dentro para fora
dão forma ao pensamento, à singular expressão.

O artesanal mobiliza o que há de mais humano em nós:
imaginar, criar e fazer,
dar sentido às emoções, memórias, relações,
dar formas, cores, sabores, funções,
dar movimento e beleza.

Nosso ativismo artesanal acontece no “fazendo”:
no olhar sobre e para o mundo,
na escolha de como consumimos e ocupamos o mundo,
na valorização do pequeno, do local e do autoral,
no manejo do corpo com as ferramentas e os materiais,
no aprendizado com o erro, a repetição e o tempo do fazer,
no contato com a natureza e nossas raízes artesãs.

É no “fazendo” que nos colocamos
corajosamente em atrito com o nosso fazer;
é no “fazendo” que transformamos
as coisas, a nós mesmos e o mundo para,
aos poucos,
reacender a sabedoria que está dentro de nós,
de cada um de nós,
de nossa ancestralidade e
do que queremos criar com sentido neste mundo.

Por um mundo feito à mão, um mundo feito por nós!