O artesão de si mesmo

O artesão de que gostaria de falar não é uma definição restritiva a um modo de produção, tipo de produto ou matéria prima. Gostaria de resgatar um arquétipo, uma energia que está em potencial em todos nós. O arquétipo daquele que faz, que gera um produto, que trabalha com a aproximação da intenção e gesto. O fazer artesanal traz a qualidade de estabelecer uma relação entre quem faz e o que é feito.

Vejo muitos artesãos cumprirem um ciclo de ter uma ideia, colocá-la em prática e estruturar uma produção. A produção vai bem, aumenta e eis que vem a pergunta: se eu continuar nesse ritmo, vou deixar de fazer o que gosto, de “por a mão na massa”, e passar a administrar um pequeno negócio. Dilema! Nesse momento teme sair do modo de produção artesanal para aumentar escala.

A sensação é a de que você vai parar de “fazer”. E o que tem no fazer do artesão que quando ele se vê com a possibilidade de não o fazer mais, se assusta?

O artesão teme perder a relação. A ação é a casa do autoconhecimento. É a ação que nos revela, que mostra nossos produtos, que elucida descobertas no processo. É o que se vê de concreto, é o que percebemos quando olhamos para uma trajetória. Nossa ação, o que de fato fazemos, é tudo o que temos para, a partir daí, gerar reflexões, questionamentos, aprofundamentos. A ação é soberana. Podemos dizer o que for, mas o fato concreto é nosso dado de realidade.

Na minha experiência e observação, o artesão tem uma pesquisa. Ele é na verdade um grande pesquisador do autoconhecimento. Se interessa em conhecer como se dá a integração de intenção e gesto.

O que fazemos com as mãos é também nossa cognição. É o resultado do que estruturamos mentalmente e emocionalmente para fazer. E ao mesmo tempo, nossas conexões neurais se formam a partir do que fazemos. Um sistema que se alimenta e se constrói mutuamente. Logo, somos o que fazemos!

E de onde nasce o que fazemos?

Algum evento interno ou externo me captura, me afeta (e tudo o que me afeta já está em mim e desperta!). Percebo o evento que me captura ou pela via do sentimento e reconheço uma vontade, ou o percebo pela via do pensamento, e reconheço uma ideia ou perguntas. Em ambos os caminhos pensamento e sentimento dançam juntos, o que muda é quem dá os primeiros passos da dança na sua percepção. E então, nasce uma intenção. Quando vamos partir para a ação, buscar o gesto que vai materializar uma intenção, muitos movimentos acontecem. Uma ação é composta de uma grande partitura de gestos entre a dança do pensar, sentir e agir. Não importa o como eu tenha iniciado, pensamento e sentimento tem papéis claros: sabemos que quem pergunta não responde! O pensar pergunta, é ele quem aponta os vazios. E o sentimento responde, é ele quem faz uma leitura do que te preenche, do que há em ti para responder.

É esta observação íntima e “artesanal” de auto conhecimento que nos permite redesenhar os limites e contornos que nos definem, ou pelos quais nos reconhecemos.

Essa é a pesquisa incessante do artesão. O fazer ativa seu processo de descoberta, se reconhece no que faz, no como faz. Na materialidade de um fazer, seja ele qual for, cabe um universo inteiro. É incrível a infinidade de descobertas que pode acontecer num processo de fazer. E diria mais, é apenas num fazer que se pode descobrir algo.

Ao se colocar em relação para fazer um vaso, um caderno, um biscoito, uma terapia, um trabalho o artesão sabe a partir de onde está brotando sua ação. Em resposta a essa atitude a matéria com a qual está trabalhando também se manifesta em forma e essência. A conversa acessa uma camada espiritual.

Acontecem sintonias e sincronicidades (as chamadas coincidências…), acontecem sinapses pineálicas (os chamados insights…), o inconsciente se expressa, seu temperamento aparece, seus limites são testados. Há a sensação “da mente se esvaziar”, que é um momento de alinhamento e integração das diferentes camadas que nos compõe. A mente está acostumada a guiar, mas sua tarefa é acompanhar e servir. Não é tudo o que somos que tem que se espremer para caber na mente, e sim a mente que precisa se ampliar para reconhecer os vários tipos de linguagens dos sentidos físicos, emocionais e espirituais.

Por fim, o maior trabalho do artesão é a construção de si mesmo. O artesão de si constrói mundos, realidade e também produtos. O trabalho artesanal passa a ser então uma atitude e uma cultura.

Despertando para a construção de si como um valor do trabalho, cria-se a cultura do fazer. A cultura do feito a mão traz em sua filosofia valores que contrastam com valores de mercado do capitalismo.

Quando chega a hora da tal pergunta para o artesão, crescer ou continuar a “fazer”, a clareza de valores e a força do amor a essa pesquisa é o que dará força de não adulterar seu caminho.

O desafio da sobrevivência é constante. O que vejo como saída em muitas pessoas que vivem essa cultura é a multiplicidade de ações, fazeres, trabalhos. Se consideramos ser artesão uma atitude e uma filosofia de vida, percebo que são valores imateriais que me constituem e que podem estar em tudo o que eu faço. O que define o artesão é o princípio que movimenta seu modo de ser e fazer.

O festival do fazer é uma das ações que está impulsionando uma revolução artesanal! Uma revolução que resgata uma cultura deste tipo de fazer. Durante os festivais, diversas oficinas do fazer manual são oferecidas e, ao longo do ano, textos e artigos são disparadores desta cultura. O caminho do autor, uma outra ação deste movimento, convida à um percurso de autoconhecimento e descobertas sobre o jeito de fazer e de intervir por meio das manualidades. O fazer manual é a porta para uma grande revolução e transformação do ser com o seu fazer!

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ARTESANAL - MANIFESTO

As mãos como ponte dos afetos de dentro para fora
dão forma ao pensamento, à singular expressão.

O artesanal mobiliza o que há de mais humano em nós:
imaginar, criar e fazer,
dar sentido às emoções, memórias, relações,
dar formas, cores, sabores, funções,
dar movimento e beleza.

Nosso ativismo artesanal acontece no “fazendo”:
no olhar sobre e para o mundo,
na escolha de como consumimos e ocupamos o mundo,
na valorização do pequeno, do local e do autoral,
no manejo do corpo com as ferramentas e os materiais,
no aprendizado com o erro, a repetição e o tempo do fazer,
no contato com a natureza e nossas raízes artesãs.

É no “fazendo” que nos colocamos
corajosamente em atrito com o nosso fazer;
é no “fazendo” que transformamos
as coisas, a nós mesmos e o mundo para,
aos poucos,
reacender a sabedoria que está dentro de nós,
de cada um de nós,
de nossa ancestralidade e
do que queremos criar com sentido neste mundo.

Por um mundo feito à mão, um mundo feito por nós!