O que em nós manifesta o que queremos ver no mundo?

“Para que o cérebro da cabeça soubesse o que era a pedra, foi preciso primeiro que os dedos a tocassem, lhe sentissem a aspereza, o peso e a densidade, foi preciso que se ferissem nela.”  (Saramago, 2000, p. 83)

A dicotomia entre cérebro e coração se tornou lugar-comum: o primeiro sendo o guardião da razão e o segundo, da emoção. Mesmo que conheçamos hoje a complexidade da biologia e interconexão entre esses órgãos, ainda carregamos ideias e clichês que colocam o cérebro como o lugar que habitam a mente, a inteligência, a consciência… A imagem desse órgão como torre de comando do corpo é reforçada por nossa cultura, por exemplo, numa educação ou num mercado insistentemente conteudista, que avalia bem quanto mais coisas e informações provamos lembrar e saber; em dispositivos, aplicativos e redes (pouco) sociais que, ao alcance das mãos, enviam sinais de todos os tipos que ativam os instintos humanos, convocam sua hipervigilância e atenção para gerar lucro para um nicho que já é milionário; e também numa indústria de cura que foca cada vez mais em pessoas ansiosas, ávidas por solucionar suas questões e dilemas pela mente, como se resolve uma equação.

Mas aqui não queremos fazer a apologia do coração como lugar de resgate de nossa essência humana ou algo que o valha. Queremos propor a integração do corpo todo, com suas partes manifestando o que podemos ver no mundo, cada uma em relação às outras e de nosso todo em relação ao todo de cada outro com quem convivemos, numa dança em que nos conectamos com as mãos – pra lembrar da etimologia das partes de manifestus: manus (mão) e festus (apanhado).

Saramago tem uma imagem bonita para contar o que em nós manifesta o que queremos ver no mundo. Em seu livro A caverna, ele narra a história do oleiro Cipriano, criador de louças de barro artesanais numa sociedade que passa a preferir utensílios de plástico. Nessa obra, o narrador explica poeticamente que não há apenas o cérebro dentro da caixa óssea da cabeça, existem também pequenos cérebros que as falanges de nossos dedos guardam – e que nascem antes do maior e são os responsáveis por manifestar nossas criações no mundo:

“Na verdade, são poucos os que sabem da existência de um pequeno cérebro em cada um dos dedos da mão, algures entre a falange, a falanginha e a falangeta. Aquele outro órgão a que chamamos cérebro, esse com que viemos ao mundo, esse que transportamos dentro do crânio e que nos transporta a nós para que o transportemos a ele, nunca conseguiu produzir senão intenções vagas, gerais, difusas, e sobretudo pouco variadas, acerca do que as mãos e os dedos deverão fazer. Por exemplo, se ao cérebro da cabeça lhe ocorreu a ideia de uma pintura, ou música, ou escultura, ou literatura, ou boneco de barro, o que ele faz é manifestar o desejo e ficar depois à espera, a ver o que acontece. […] O cérebro da cabeça andou toda a vida atrasado em relação às mãos, e mesmo nestes tempos, quando nos parece que passou à frente delas, ainda são os dedos que têm de lhe explicar as investigações do tacto. […].” (Saramago, 2000, p. 82-3, grifos nossos)

“O cérebro perguntou e pediu, a mão respondeu e fez.” (p. 84) Criando mais intimidade entre essas partes todas envolvidas no fazer – cérebro, coração, olhos, mãos… – podemos integrar com mais harmonia as partes e manifestar um mundo feito à mão. Um mundo em que caibam todos como partes, em que se cria aquilo que é preciso, na medida justa, em que nos impliquemos materialmente no que fazemos, ora tateando imperfeições, ora nos reconhecendo artífices, manifestando criações e relações menos plastificadas e que possam nascer do atrito genuíno com a experiência que a vida humana proporciona. 

Em novembro, abriremos a nova edição do Despertar do Fazer(se), um espaço para criar essa intimidade com nosso corpo no processo artesanal, no “fazendo” – como gostamos de dizer. A partir de fazeres manuais em 4 encontros on-line e ao vivo, observaremos e registraremos o que essas manualidades nos fazem, o que elas movem em nós e ao nosso redor. Venha despertar seu manifesto do que quer ver no mundo!

Saramago, José. A Caverna. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

 

Despertar do Fazer(se)

Os encontros acontecerão às quartas-feiras das 14h30 às 17h

Mais informações e inscrições no link:
https://revolucaoartesanal.com.br/eventos/o-despertar-do-fazerse/

11/11 | Encontro 1: o despertar do fazer(se) – O que lápis e papel contam sobre você.

18/11 | Encontro 2: O que o fazer te faz? – Papos de cozinha, mão na massa.

25/11 | Encontro 3: O fazer construtor e criativo, vamos fazer juntos? – Unindo papéis em um caderno inspirado para inspirar.

2/12 | Encontro 4: O que vive no meu fazer? – Tecendo contorno do que está vivo em mim.

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Escrita artesanal por Carolina Messias, com Ciça Costa e Bruno Andreoni

ARTESANAL - MANIFESTO

As mãos como ponte dos afetos de dentro para fora
dão forma ao pensamento, à singular expressão.

O artesanal mobiliza o que há de mais humano em nós:
imaginar, criar e fazer,
dar sentido às emoções, memórias, relações,
dar formas, cores, sabores, funções,
dar movimento e beleza.

Nosso ativismo artesanal acontece no “fazendo”:
no olhar sobre e para o mundo,
na escolha de como consumimos e ocupamos o mundo,
na valorização do pequeno, do local e do autoral,
no manejo do corpo com as ferramentas e os materiais,
no aprendizado com o erro, a repetição e o tempo do fazer,
no contato com a natureza e nossas raízes artesãs.

É no “fazendo” que nos colocamos
corajosamente em atrito com o nosso fazer;
é no “fazendo” que transformamos
as coisas, a nós mesmos e o mundo para,
aos poucos,
reacender a sabedoria que está dentro de nós,
de cada um de nós,
de nossa ancestralidade e
do que queremos criar com sentido neste mundo.

Por um mundo feito à mão, um mundo feito por nós!