Um detalhe sobre a cama no quarto de dormir

Como as minúcias das nossas escolhas podem gerar grandes mudanças

Imagina uma pessoa feliz ao arrumar sua cama, hoje! Pronto!

Adoro cuidar das roupas de cama, mesa e banho de casa. Me parece que é um mimo que fazemos para o nosso lar, este lugar que escolhemos habitar.

Há algum tempo os lençóis de casa estão precisando de uma atenção. Há mais de um mês comecei a buscar por lençóis que sejam gostosos, bonitos, macios, valores possíveis, que tenham elástico e que tenham “vira“. Isso mesmo, vira. Aquele acabamento no barrado superior que permite dobrar a ponta do lençol sobre o cobertor e o avesso do tecido fica para baixo. Que detalhe, não?

Pois é! Arrumar a cama, estender o lençol e virar o barrado sobre o cobertor me diz de aconchego, conforto, beleza e também de história. Na casa em que nasci os lençóis sempre tiveram a vira e até hoje, assim são os lençóis de casa.

Depois de muito pesquisar, comecei a entender que as confecções não têm mais feito a vira nos lençóis. Fui a algumas lojas, encontrei de tudo e nada da vira. Recorri à internet, muitos fios, preço para todos os bolsos de poucos a muitos reais, estampas lindas e/ou lisos e nada. Então, pensei: ou vou ficar sem lençol ou compro qualquer um outro. Afinal, é só um detalhe, não é mesmo? Sim, é um detalhe… do qual não abro mão!

#FiqueEmCasa é a recomendação do momento como proteção social e cuidado com a vida. Como resolver, estão?! Bem, entrei na internet, escolhi um lençol estampado, no tamanho que queria, dentro de um valor que poderia pagar, e comprei.  Quando chegou: abri, medi, cortei uma tira, inverti avesso com direito, costurei… Pronto, lá estava a vira que tanto queria. Lavei, secou e vesti minha cama. Alegria! Sim, estou feliz! Um pequeno detalhe que fez toda a diferença. Assim que a proteção social acabar, que a vida voltar ao (novo)normal, quero ir a uma loja, comprar o tecido para fazer o lençol do começo ao fim, como um todo.

Enquanto arrumava a cama, hoje, vários pensamentos iam chegando sobre esse episódio: o que é importante para cada um… O que pequenos detalhes dizem sobre nós, sobre o nosso fazer, sobre o caminhar de cada um… qual o significado de lar, de beleza, de aconchego, de habitar… qual o sentido disso tudo neste momento que o mundo está de ponta cabeça, vivendo uma pandemia e o que mais precisamos é de um cuidar do outro.

Me veio também um olhar para os produtos que nos são ofertados. Qual o papel da indústria, das fábricas, das grandes magazines, do marketing? O que as organizações estão oferecendo ao consumidor e o consumidor, por sua vez, o que está consumindo? Qual o nosso papel enquanto consumidor? 

O que os fabricantes têm nos oferecido? Produtos, com menos detalhes, produção em massa, menos qualidade, mais rapidez na produção, maior quantidade de produtos em menos tempo. Fico com a sensação que é a indústria que escolhe o que nós devemos consumir. E aqui estou falando somente de produto/objeto, imagine na indústria alimentícia, na saúde, na educação…

E nós, sabemos o que queremos? Compramos qualquer coisa? Sabemos de onde vem o produto que compramos, sabemos quem fez, em que condições? E as matérias-primas utilizadas, consomem recursos naturais? Quanto permitimos que o outro escolha por nós? Será que nos desconectamos tanto que perdemos a riqueza dos detalhes, do belo, dos processos?

Que mundo é este que queremos viver? 

Um mundo feito por nós, onde vida alimenta vida, ou um mundo em que outros escolham como vamos seguir nos oferecendo, aparentemente de forma fácil, produtos prontos promovendo a desconexão e distanciamento de nós mesmos. A escolha por um lençol com “vira” na intimidade do meu quarto me impulsionou a intervir no produto oferecido no mercado. Por isso, uma simples vira pode promover uma virada na forma como nos colocamos no mundo.

Me pergunto muito onde estamos, frente a tudo isso, com nossas escolhas, com nosso olhar para a vida. A Mãe Terra e a Mãe Natureza estão nos chamando para a vida. Mais do que nunca, o consumo está pedindo consciência. Mais do que nunca o fazer está sendo chamado a ser e estar inteiros, presentes no mundo. Estar em cuidado social, dentro de nossas casas, nos permite deslocarmos de onde estamos, refletir, alinhavar e pensar futuro. 

Fazer, pensar e criar um mundo possível feito por todos nós, com consciência e escolhas vivas, com beleza e cuidado para tudo que é vivo. 

Que movimentos a vida está pedindo de nós, hoje?

Crônicas do Fazendo por Ciça Costa
Revisão por Carolina Messias

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Queremos muito te ouvir, saber de suas reflexões manuais vividas durante este recolhimento social. O que o fazer está revelando sobre você?

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Queremos tornar as Crônicas do Fazendo numa publicação contando todas essas histórias. 

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Leia também este artigo sobre “As coisas que ocupam o nosso lar”

ARTESANAL - MANIFESTO

As mãos como ponte dos afetos de dentro para fora
dão forma ao pensamento, à singular expressão.

O artesanal mobiliza o que há de mais humano em nós:
imaginar, criar e fazer,
dar sentido às emoções, memórias, relações,
dar formas, cores, sabores, funções,
dar movimento e beleza.

Nosso ativismo artesanal acontece no “fazendo”:
no olhar sobre e para o mundo,
na escolha de como consumimos e ocupamos o mundo,
na valorização do pequeno, do local e do autoral,
no manejo do corpo com as ferramentas e os materiais,
no aprendizado com o erro, a repetição e o tempo do fazer,
no contato com a natureza e nossas raízes artesãs.

É no “fazendo” que nos colocamos
corajosamente em atrito com o nosso fazer;
é no “fazendo” que transformamos
as coisas, a nós mesmos e o mundo para,
aos poucos,
reacender a sabedoria que está dentro de nós,
de cada um de nós,
de nossa ancestralidade e
do que queremos criar com sentido neste mundo.

Por um mundo feito à mão, um mundo feito por nós!