Coisas ressignificadas – olhar e prática sobre coisas lembradas e coisas descartadas

Lixo ou tesouro é questão de definição.

E o que define o que vemos pauta nossa ação – É lixo? Vai pro saco preto! É tesouro? Guarda! É curioso pensar que nas duas ações tiramos a coisa de nossas vistas: uma para longe de nós, outra para perto de nós, mesmo que na prateleira mais alta do armário…

Você pode estar pensando: mas se é tesouro eu também posso mostrar, posso usar… Isso é verdade quando você torna a coisa um objeto, dá significado a ela, como uma foto num porta-retratos (uma das muitas guardadas), um objeto de decoração de família ou mesmo uma coleção de livros, de mimos – objetos que carregam histórias.

“- Tem razão – concordou uma das moças. – Eu venero – é assim mesmo que se diz? – os sapatos de cetim da vovó, com que ela se casou. […] Eu sinto que aqueles sapatinhos faziam parte de um amor e de uma grande esperança.” (“Coisas lembradas”, Carlos Drummond de Andrade)

Quando damos sentido às coisas, elas ficam eternizadas para nós. O que guardamos conta um pouco da nossa história, carrega um pouco de nós, é como nosso museu particular guardião de nossa cultura. Dos nossos tesouros cuidamos com afeto. E do que definimos como lixo, como cuidamos? É fato: o que descartamos também narra nossa história, também conta da nossa cultura, pois sai de nossas vistas, mas duram, às vezes mais do que nós!

“– Nunca tinha pensado nisso – falou o estudante. É mesmo. As coisas podem durar mais do que a gente, mesmo sendo coisas frágeis, que a gente fez.”
(“Coisas lembradas”, de Carlos Drummond de Andrade)

Sim, e a gente não faz só o que deixa saudade. A gente faz lixo, e muito, e damos pouca bola pra isso… Só em São Paulo, saem de nossas casas cerca de 12 mil toneladas de lixo por dia, e apenas 2,5% realmente são recicláveis. E isso traz notícia de como olhamos as coisas descartadas, de como as definimos e colocamos todas no mesmo balaio: é lixo. Se olharmos com mais cuidado, veremos resíduos, recicláveis e não recicláveis. Com mais esmero ainda, podemos ver que, além do tipo de resíduo, há diferença de origem, de composição química, de periculosidade… Mas só de olhar lixo como resíduo já pode mudar nossa ação de descarte.

Se não cuidamos do nosso resíduo potencialmente reciclável, automaticamente o transformamos em rejeito e pautamos seu destino: o aterro sanitário. Cuidar, nesse caso, não é escolher o que já está impregnado de sentido e de emoção, mas selecionar o que pode ganhar novo sentido e outros destinos – o que pode transformar descarte em lembrança.

“[…] Alguém suspirou:
– ‘A grande dor das coisas que passaram.’

Mas o pintor reagiu.
– A grande cor, a grande flor das coisas que passaram.”
(“Coisas lembradas”, de Carlos Drummond de Andrade)

A crônica “Coisas lembradas”, de Drummond, foi publicada pela primeira vez no Jornal do Brasil, em agosto de 1982. Se esse escrito não fosse considerado relíquia, o jornal teria sido descartado no meio de tantos outros papéis. Guardada no arquivo, ela ganhou outro destino: do suporte material do jornal passou ao suporte livro Boca de luar, de 1984, com outras crônicas do mesmo escritor. Ressignificada, essa história se torna neste texto um exercício de colagem, de reescritura, a possibilidade de continuar a conversa sobre coisas lembradas com outro olhar, outra roupagem e suporte virtual.

Esta semana começa a Semana Lixo Zero, de 19 a 27 de outubro de 2018, uma iniciativa do Instituto Lixo Zero Brasil com Casa Causa e Abraps para conscientizar pessoas e organizações sobre a questão dos nossos resíduos, nos mais diferentes nichos, e pensar em soluções para que a meta Lixo Zero seja alcançada. A Revolução Artesanal apoia essa causa e abre as portas do Estúdio InTotum para duas oficinas ligadas à reciclagem, ressignificação e nossa memória afetiva.

24/10 (quarta-feira) | Estúdio aberto para Semana Lixo Zero | Oficinas Revolução Artesanal

09:30-12:00 Reaproveitamento de materiais: Oficina de colagem Revolução artesanal

Explorar expressão artística através da colagem. Revistas guardam fotografias e textos que nos contam histórias a realidade em que vivemos. Durante essa oficina, vamos observar, recortar e recontar essas imagens a partir de um olhar apreciativo.

14:00-16:30 Oficina Têxtil Fios e Tramas com a Revolução Artesanal

Cada pessoa envolvida em seu processo de fazer irá criar seu próprio tecido, fazendo também seu suporte para tecer e/ou retecer. Os suportes poderão ser criados a partir de caixas de papelão, galhos, madeiras, retalhos, fios, barbantes, lãs, fibras, linhas, agulhas etc.

Onde? Rua Tupi, 860, cj. 2. Participe! Dê nova forma aos objetos. O que você ressignifica te transforma.

As oficinas são gratuitas e as vagas limitadas.

Inscrições pelo e-mail contato@revolucaoartesanal.com.br

ARTESANAL - MANIFESTO

As mãos como ponte dos afetos de dentro para fora
dão forma ao pensamento, à singular expressão.

O artesanal mobiliza o que há de mais humano em nós:
imaginar, criar e fazer,
dar sentido às emoções, memórias, relações,
dar formas, cores, sabores, funções,
dar movimento e beleza.

Nosso ativismo artesanal acontece no “fazendo”:
no olhar sobre e para o mundo,
na escolha de como consumimos e ocupamos o mundo,
na valorização do pequeno, do local e do autoral,
no manejo do corpo com as ferramentas e os materiais,
no aprendizado com o erro, a repetição e o tempo do fazer,
no contato com a natureza e nossas raízes artesãs.

É no “fazendo” que nos colocamos
corajosamente em atrito com o nosso fazer;
é no “fazendo” que transformamos
as coisas, a nós mesmos e o mundo para,
aos poucos,
reacender a sabedoria que está dentro de nós,
de cada um de nós,
de nossa ancestralidade e
do que queremos criar com sentido neste mundo.

Por um mundo feito à mão, um mundo feito por nós!