“Não é força, é ritmo” – o manusear da madeira

Natural, sólida, leve e versátil, a madeira é o material que nos conecta com os primórdios da humanidade – sendo utilizada para abrigo, como fonte de calor e como matéria-prima para fabricação de objetos, desde uma pequena colher, móveis, estruturas e até navios!

Aqui queremos falar do manusear da madeira no espaço da marcenaria, um dos fazeres artesanais mais antigos cuja história se mistura com a da arte mobiliária e da carpintaria. Como produto, é conhecida sua multiplicidade de aplicações e usos no âmbito artesanal e industrial. Mas nossas questões hoje não são sobre usos, profissões ou produtos, e sim sobre o processo do fazer com a madeira. O que o manuseio da madeira convoca em nós? O que o transformar de um bloco de madeira sólido transforma em nós no processo da marcenaria?

A leveza e a resistência da madeira convidam o fazedor primeiro a olhar a sua prática física (o quanto de força vou usar para cortar, talhar, lixar… esse bloco?) ao mesmo tempo que convoca sua imaginação e noção espacial (qual o tamanho, a forma e as dimensões desse objeto que desejo criar?). Durante o manejo do bloco de madeira ainda disforme, o fazedor mantém o processo mental ativo focado tanto em seu objetivo (a imagem do produto por vir) quanto no cuidado do fazer presente (para evitar acidentes em si e na madeira). Entretanto, a resistência do material ativa outros processos latentes no fazedor: sua relação com o tempo, com seu corpo e com suas emoções.

Aos poucos, a impaciência ou o estado de fluxo vão ganhando espaço no sentimento do fazedor; a dor nos braços que se espalha pelo corpo inteiro, tenso e debruçado sobre o devir-objeto, começa a incomodar e transborda em suor por todos os poros; cansaço, alegria, irritação, surpresa, fracasso e triunfo – uma montanha-russa de emoções atravessa o fazedor desde o bloco de madeira até o objeto final.

No processo, o fazedor aprende um mantra que o ajuda a se manter presente:

“Não é força, é ritmo” – aconselhou Ciça Costa a uma das participantes de uma oficina de marcenaria vendo seu trabalho vigoroso sobre a madeira. Ao chegar na oficina, a participante imaginava que iria transformar a madeira num botão, mas a potência de seu manusear a conduziu a outro objeto…

“Não é força, é ritmo; não é pressa, é paciência; é o tempo do tempo – não o da hora marcada. Usa o seu corpo para te ajudar. É uma dança do imperfeito e do equilíbrio entre você e a matéria, entre você e outro.” – completou Ciça. E o botão que a participante queria acabou virando um banco. Com ele, assentou aquele mantra para a vida como seu maior aprendizado.

E por que o botão virou banco? – mistério do processo latente da fazedora. Talvez a essa essência do fazer não seja possível ter acesso, mas o que é aparente é o processo de transformação do material e de si a partir das ferramentas. Serrote, martelo, formão, lixa, plaina ganham movimento, ritmo e vida nas mãos do fazedor – tornam-se um e ponte para a criação e reconhecimento de si e do que nasce de seu fazer, como revela o relato do processo de criação de uma colher de madeira por Bruno Andreoni em seu projeto de marcenaria:

“A madeira dura pedia que meu corpo todo estivesse em cima da minha mão para entalhar, arrancar cada pedaço. De repente, uma pessoa olha para mim e diz: ’com suas mãos e braços firmes, junto com a ferramenta mais inclinada e em pequenos movimentos você consegue fazer melhor’.  Isso parecia óbvio, mas não era. O que aconteceu em seguida foi o processo interno de entender o quanto de controle, conhecimento e consciência corporal eu tinha para deixar o braço firme no ponto que o ofício me pedia, o quanto eu tive que estruturar o meu pensar para acolher minhas expectativas de produzir uma colher de pau em 15 minutos. O que aconteceu para a colher nascer, para eu conseguir dar forma, foi um processo de me conhecer, me reconhecer e me ver enquanto eu estava em relação ao meu fazer, não em relação ao produto final. Ter que aceitar o meu fazer impreciso, a minha imperfeição, o meu ser em desenvolvimento (ainda não completo) é um processo e tanto. Saí dali com ‘a minha colher’, com o meu processo de dar forma, sendo autor de algo, conhecendo algo novo.  Me conhecendo.”

Criar projetos em madeira é o convite aparente do nosso Dia do Fazer – Oficina e Mentoria de Projetos em Marcenaria. Descobrir convites latentes que seu fazer convoca sobre sua relação consigo, com seu corpo, suas emoções e expectativas é a nossa principal convocação. A próxima Oficina será dia 28/8. Participe!

Leia também: O sentimento de autoria através do fazer manual

#escritaafetiva por Carolina Messias

ARTESANAL - MANIFESTO

As mãos como ponte dos afetos de dentro para fora
dão forma ao pensamento, à singular expressão.

O artesanal mobiliza o que há de mais humano em nós:
imaginar, criar e fazer,
dar sentido às emoções, memórias, relações,
dar formas, cores, sabores, funções,
dar movimento e beleza.

Nosso ativismo artesanal acontece no “fazendo”:
no olhar sobre e para o mundo,
na escolha de como consumimos e ocupamos o mundo,
na valorização do pequeno, do local e do autoral,
no manejo do corpo com as ferramentas e os materiais,
no aprendizado com o erro, a repetição e o tempo do fazer,
no contato com a natureza e nossas raízes artesãs.

É no “fazendo” que nos colocamos
corajosamente em atrito com o nosso fazer;
é no “fazendo” que transformamos
as coisas, a nós mesmos e o mundo para,
aos poucos,
reacender a sabedoria que está dentro de nós,
de cada um de nós,
de nossa ancestralidade e
do que queremos criar com sentido neste mundo.

Por um mundo feito à mão, um mundo feito por nós!